Espero
Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Perfil de escrava
Quando os olhos entreabro à luz que avança,
Batendo a sombra e pérfida indolência,
Vejo além da discreta transparência
Do alvo cortinando uma criança.
Pupila de gazela - viva e mansa,
Com sereno temor colhendo a ardência
Fronte imersa em palor..
Rir de inocência,
Rir que trai ora angústia, ora esperança...
Eis o esboço fugaz da estátua viva,
Que - de braços em cruz - na sombra avulta
Silenciosa, atenta, pensativa! Estátua?
Não, que essa cadeia estulta
Há de quebrar-se, mísera, cativa,
Este afeto de mãe, que a dona oculta!
Narcisa Amália, em "Nebulosas". 1872.
Narcisa Amália de Campos - poeta, republicana, abolicionista e feminista do século XIX
A poeta esquecida do século XIX
Meditação do Duque de Gândia sobre a morte de Isabel de Portugal
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Nunca Mais
A tua face será pura limpa e viva,
Nem teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
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https://www.youtube.com/watch?v=7IKICVSMRys&t=24
O mistério do falso poema de Sophia que se tornou viral está desvendado. Foi escrito em 2009 pela juíza Adelina Barradas de Oliveira
Fonte:
https://www.publico.pt/2019/02/15/culturaipsilon/noticia/poema-juiza-escreveu-sophia-celebrizou-1862062
Vem comigo ver as pirâmides fantásticas do vento
No interior luminoso da terra encontrarás
O segredo de quartzo para desvendares o tempo
Onde contemplamos a fulva doçura das cerejas
Iremos para onde os restos de vida não acordem
A dor da imensa árvore a sombra
Dos cabelos carregados de pólenes e de astros
Crescemos lado a lado com o dragão
O súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
Iluminará por um instante as águas do jardim
E o alecrim perfumará os noctívagos passos
Há muito prisioneiros no barro
Onde o rosto se transforma e morre
E já não nos pertence
Vem comigo
Praticar essa arte imemorial de quem espera
Não se sabe o quê junto à janela
Encolho-me
Como se fechasse uma gaveta para sempre
Caminhasse onde caiu um lenço
Mas levanto os olhos
Quando o verão entra pelo quarto e devassa
Esta humilde existência de papel
Vem comigo
As palavras nada podem revelar
Esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
Pegando fogo ao corpo mais próximo do meu
Al Berto
(in O Medo, Assírio & Alvim)
A exaltação da pele
Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
E sem gesto vago
Desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu
Suspensa de mundos cintilantes pelas veias
Metade fêmea metade mar como as sereias.
Natália Correia, ativista social e escritora portuguesa (1922-1993).
in "Poemas". 1955.
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