sábado, 4 de fevereiro de 2017



Abraça-me

Abraça-me.
Quero ouvir o vento que vem da tua pele,
e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos.
Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não
ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida
na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos
para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas.
Abraça-me. Veste o meu corpo de ti,
para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos,
o sentido da vida.
Procura-me com os teus antigos braços de criança,
para desamarrar em mim a eternidade,
essa soma formidável de todos os momentos livres
que a um e a outro pertenceram.
Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor.
Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos,
para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo,
o mais intenso amor do universo,
e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

Joaquim Pessoa,
in 'Ano Comum'


Fonte:http://www.citador.pt/
Fotos:https://pt.pinterest.com/cinafraga/

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017


No centro do mundo


Oscilante geometria tranquila
presença suficiente do ínfimo e do amplo
No centro do tempo não há tempo

Tranquilidade para ir ao encontro de
Estou dentro estou aberto habito
um limpo rosto de desconhecida frescura

Ramagens dispersão de nuvens indícios ténues

Sou uma linguagem límpida com o vento
Bebo nas múltiplas nascentes
do espaço puro
Acendo-me e apago-me e é a claridade que muda
Tranquilidade das ramagens crepitação de brasas

Durmo silencioso e mais desperto do que nunca
Sou o ar que se dissipa no ar
Como me perdi quem sou as interrogações cessaram

Estou dentro e fora na densidade subtil
Não ha aqui imagens extravagantes rumores estranhos
Tudo se desenrola na lúcida amplitude tranquila
As palavras sucedem-se como vagarosas nuvens
O dia é limpido e lê-se como um livro aberto

António Ramos Rosa



quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Homenagem a  Rosa Lobato de Faria



Quimera


Eu quis um violino no telhado
e uma arara exótica no banho.
Eu quis uma toalha de brocado
e um pavão real do meu tamanho.
Eu quis todos os cheiros do pecado
e toda a santidade que não tenho.
Eu quis uma pintura aos pés da cama
infinita de azul e perspectiva.
Eu quis ouvir ouvir a história de Mira Burana
na hora da orgia prometida.
Eu quis uma opulência de sultana
e a miséria amarga da mendiga.
Eu quis um vinho feito de medronho
de veneno, de beijos, de suspiros.
Eu quis a morte de viver dum sonho
eu quis a sorte de morrer dum tiro.
Eu quis chorar por ti durante o sono
eu quis ao acordar fugir contigo.
Mas tudo o que é excessivo é muito pouco.
Por isso fiquei só, com o meu corpo.




Rosa Lobato de Faria


Cai a Chuva no Portal


Cai a chuva no portal, está caindo 
Entre nós e o mundo, essa cortina 
Não a corras, não a rasgues, está caindo 
Fina chuva no portal da nossa vida. 
Gotas caem separando-nos do mundo 
Para vivermos em paz a nossa vida. 


Cai a chuva no portal, está caindo 

Entre nós e o mundo, essa toalha 
Ela nos cobre, não a rasgues, está caindo 
Chuva fina no portal da nossa casa. 
Por um dia todos longe e nós dormindo 
Lado a lado, como páginas dum livro. 



Lídia Jorge, (Inédito) 



Fonte. 
http://www.citador.pt/poemas/
imagem: pesquisa google

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017




Os teus pés 

Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada púrpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram vôo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,


até me encontrarem. 

Pablo Neruda,

terça-feira, 31 de janeiro de 2017



MÃE NEGRA


A mãe negra embala o filho.
Canta a remota canção
Que seus avós já cantavam
Em noites sem madrugada.
Canta, canta para o céu
Tão estrelado e festivo.
É para o céu que ela canta,
Que o céu
Às vezes também é negro.
No céu
Tão estrelado e festivo
Não há branco, não há preto,
Não há vermelho e amarelo.
- Todos são anjos e santos
Guardados por mãos divinas.
A mãe negra não tem casa
Nem carinhos de ninguém…
A mãe negra é triste, triste,
E tem um filho nos braços…
Mas olha o céu estrelado
E de repente sorri.
Parece-lhe que cada estrela
É uma mão acenando
Com simpatia e saudade…

Aguinaldp Fonseca 
(1922-2014), Cabo Verde, poesia



Foto:https://pt.pinterest.com/cinafraga/

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017


Pequeno Poema

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.


Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.


Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.


As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...


Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...

Sebastião da Gama, 
in 'Antologia Poética'



http://www.citador.pt
Fotos ; https://pt.pinterest.com/cinafraga/

domingo, 29 de janeiro de 2017




A uma Bailarina


Quero escrever meu verso no momento
Em que o limite extremo da ribalta
Silencia teus pés, e um deus se exalta
Como se o corpo fosse um pensamento.

Além do palco, existe o pavimento
Que nunca imaginamos em voz alta,
Onde teu passo puro sobressalta
Os pássaros sutis do movimento.

Amo-te de um amor que tudo pede
No sensual momento em que se explica
O desejo infinito da tristeza,

Sem que jamais se explique ou desenrede,
Mariposa que pousa mas não fica,
A tentação alegre da pureza.

Paulo Mendes Campos,
in 'Antologia Poética'