sábado, 27 de maio de 2017





Saudade


Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono


Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'


Fonte do poema: http://www.citador.pt/
Foto:https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 26 de maio de 2017





Mãos

Estas carícias que trocamos
de vez em quando
mesmo antes de adormecer,
enquanto lá fora resmoneia o vento
e cá dentro tudo repousa do que é,
talvez digam mais do nosso amor
que todo o querer com que nos abraçamos
levados pelas rajadas do desejo:
um mesmo vento poderia erguer-se
em planícies mais suaves,
enquanto estas mãos,
já cautas e endurecidas,
apenas sabem passear
onde existe amor.

Um poema de Àlex Susanna

em Bosques e Cidades, 
tradução colectiva revista e apresentada por Rosa Alice Branco (Mateus, Outubro de 1995), Lisboa: Quetzal Editores, 1996, p. 20.



Foto : https://www.pinterest.pt/cinafraga/


quinta-feira, 25 de maio de 2017




A  PURA  FACE

Como encontrar-te depois de ter perdido
Uma por uma as tardes que encontrei
O ser de todo o ser de quem nem sei
Se podes ser ao menos pressentido?

Não te busquei no reino prometido
Da terra nem na paixão com que eu a amei
E porque não és tempo não te dei
Meu desejo pelas horas consumido

Apenas imagino que me espera
No infinito silêncio a pura face
Pralém de vida morte ou Primavera
E que a verei de frente e sem disfarce


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In Livro sexto, 1962

A Estrela



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 24 de maio de 2017




DIÁLOGO

Não te afundes nos meus olhos rasos de água.
Vê só a alma que carrego.
Puro engano, não me emudeceres num beijo.
E leres com as tuas mãos, o que esta árvore diz ao ser beijada.
Sim! Embala-te na melodia de um sorriso.
No cantar puro desta fonte, sou o sopé de uma colina.
A margem refrescante de um rio,
As raízes profundas desta árvore pura.
Já sei!
Tens receio que repartindo a minha sede, a minha sombra.
A penumbra me roube um certo brilho.
Serena pois amor , há em mim a água cristalina!
Que revitaliza a tenra flor.
Vem amor, não resistas a estas lágrimas aprisionadas
Preciso de ti para ser feliz, ama-me, basta-me já!
Sendo rio… sendo água, a solidão da noite muda e glaciar
Cobre-me já, o vítreo manto lunar…
Onde a lua dama nua persiste em mergulhar.
Vem beber amor nos olhos meus.
Acende neles a indiscreta vontade de me amar.

Augusta Maria Gonçalves

10/3/2016


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terça-feira, 23 de maio de 2017





Não te rendas

Não te rendas, ainda estás a tempo
De alcançar e começar de novo,
Aceitar as tuas sombras,
Enterrar os teus medos,
Libertar o lastro,
Retomar o voo.
Não te rendas que a vida é isso,
Continuar a viagem
Perseguir os teus sonhos,
Destravar o tempo,
Remover os escombros,
e destapar o céu.
Não te rendas, por favor não cedas,
Mesmo que o frio queime,
Mesmo que o medo morda,
Mesmo que o sol se esconda,
E se cale o vento,
Ainda há fogo na tua alma
Ainda há vida nos teus sonhos.
Porque a vida é tua e teu também o desejo
Porque o quiseste e porque eu te quero
Porque existe o vinho e o amor, é certo.
Porque não há feridas que não cure o tempo.
Abrir as portas,
Tirar os ferrolhos,
Abandonar as muralhas que te protegeram,
Viver a vida e aceitar o repto,
Recuperar o riso,
Ensaiar um canto,
Baixar a guarda e estender as mãos
Abrir as asas
E tentar de novo,
Celebrar a vida e retomar os céus.
Não te rendas, por favor não cedas,
Mesmo que o frio queime,
Mesmo que o medo morda,
Mesmo que o sol se ponha e se cale o vento,
Ainda há fogo na tua alma,
Ainda há vida nos teus sonhos
Porque cada dia é um começo novo,
Porque esta é a hora e o melhor momento.
Porque não estás só, porque eu te amo


Mario Benedetti



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 22 de maio de 2017



Abraça-me

Quero ouvir o vento que vem da tua pele,
e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos.
Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não
ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida
na palidez de todos os caminhos,
e que ambos mordemos para provar o sabor que tem
a carne incandescente das estrelas.
Abraça-me.
Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar
o sentido dos sentidos, o sentido da vida.
Procura-me com os teus antigos braços de criança,
para desamarrar em mim a eternidade,
essa soma formidável de todos os momentos livres
que a um e a outro pertenceram.
Abraça-me.
Quero morrer de ti em mim, espantado de amor.
Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos,
para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo,
o mais intenso amor do universo,
e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me.
Uma vez só.
Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.


Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'


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domingo, 21 de maio de 2017




Deixa-me errar alguma vez,
porque também sou isso: incerta e dura,
e ansiosa de não te perder
agora que entrevejo um horizonte.
Deixa-me errar e me compreende
porque se faço mal é por querer-te
desta maneira tola, e tonta,
eternamente recomeçando a cada dia
como num descobrimento
dos teus territórios de carne e sonho,
dos teus desvãos de música ou vôo,
teus sótãos e porões
e dessa escadaria de tua alma.
Deixa-me errar mas não me soltes
para que eu não me perca
deste tênue fio de alegria
dos sustos do amor que se repetem
enquanto houver entre nós essa magia.



Lia Luft


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