quinta-feira, 18 de outubro de 2018





Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor
seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível
dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura
dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer
que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas
nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras
dos véus da alma...
É um sossego, uma unção,
um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta,
muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade
o olhar estático da aurora.



Vinícius de Moraes,
Diplomata, poeta e compositor brasileiro (1913-1980).


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 17 de outubro de 2018





As  Palavras

Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo
As palavras identificam-se com o asfalto negro
O tropel das nuvens
A espessura azul das árvores acesas pelos faróis
O rumor verde
As palavras saem de um ferida exangue
De teclas de metal fresco
De caminhos e sombras
Da vertigem de ser só um deserto
De armas de gume branco
Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos
E há palavras como giestas vivas
Matrizes primordiais matéria habitada
Forma indizível num rectângulo de argila
Quem alimenta este silêncio senão o gosto de
Colocar pedra sobre pedra até á oblíqua exactidão?
As palavras vêm de lugares fragmentários
De uma disseminação de iniciais
De magmas respirados
De odor de gérmen de olhos
As palavras podem formar uma escrita nativa
De corpos claros
Que são as palavras?Imprecisas armas
Em praias concêntricas
Torres de sílex e de cal
Aves insólitas
As palavras são travessias brancas faces
Giratórias
Elas permitem a ascensão das formas
Elevam-se estrato após estrato
Ou voam em diagonal
Até à cúpula diáfana
As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado
Que enfrentam as palavras?O espelho
Da noite a sua impossível
Elipse
Saem da noite despedaçadas feridas
E são signos do acaso pedras de sol e sal
A da sua língua nascem estrelas trituradas


António Ramos Rosa, poeta português (1924- 2013)




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domingo, 14 de outubro de 2018






Amo-te (mais linda namorada)
Como a ninguém na terra inteira e eu
Amo-te bem mais que tudo que há no céu
Há luz solar e canto à sua chegada
Embora o inverno espalhe em toda parte
Tanto silêncio e tanta escuridão
Que ninguém mais percebe outra estação
Grassar na vida (minha vida à parte) –
E se o que se diz mundo por favor
Ou sorte ouvisse o canto (ou visse que
A luz do meio-dia se avizinha
Quão mais feliz o coração caminha
Aperto de mais perto de você
Creria (namorada) só no amor



E. E. Cummings, poeta estado-unidense (1894- 1962).



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