sábado, 16 de março de 2019





Posse II

Ele  

Seduzir o cotidiano pelo corpo.
Penetrá-lo deste brilho longo,
compacto,
onde o cansaço não é tédio
mas úmido intervalo.

A paisagem não sustenta
mais os olhos; estrelas
despojaram-se dos monólogos,
a flor voltou a si, não mais
dizer exausto, a primavera guardou
sua intimidade no discurso
das árvores, e o amor,
esgarçado de imagens,
procurou outro equilíbrio
além da frase, de um silêncio
a outro.

Nem sempre a paz levou-nos
a suas tácitas paragens:
a liberdade aspirou um ser estranho,
em que de novo nos olhássemos.

No corpo prosseguimos
onde o amor parava.
E inventamos. Sem palavras
tornamos nossa a carne da manhã,
a exaurir o tempo, sem fidelidade
alguma, no dia imprevisível,
além do nosso invento.


Lupe Cotrim Garaude, poetisa brasileira (1933-1970).
in 'Inventos'




Fonte: http://www.citador.pt/

Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 11 de março de 2019





Vida:
Sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
Cujos passos são horas
Cadenciadas
Rítmicas
Fatais.
A cada movimento do teu corpo
Dispersam asas de desejos
Que me roçam a pele
E encrespam os nervos na alucinação do «nunca mais».
Vou seguindo teus passos
Lutando e sofrendo
Cantando e chorando
E ficam abertos meus braços:
Nunca te alcanço!
Meu suplício de Tântalo.
Envelheço...
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
Na oscilação nervosa
Das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
À punhalada dilacero a folhagem
E abro clareiras
Na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
No roçar dos espinhos
Minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
Meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
Firme
Gloriosa
Tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
No lodo...
O vento da noite badala nos ramos
Sarcasmos canalhas.
Não avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
Do meu grito
Que vêm de longe e de perto
Do sul e do norte
Que me envolvem
E esmagam:
Maldita selva, maldita selva,
Antes o deserto, a sede e a morte!


Manuel da Fonseca, in "Rosa dos Ventos"




Fonte: http://www.citador.pt/


Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/