sábado, 3 de março de 2018




Carta

Quando partiste ainda havia
Um sol como de verão.
Partiste, e logo a invernia
Triste do meu coração
Rompeu de cara sombria.
Mar que vias da janela,
Tão sereno e tão azul,
Torvo ao largo se encapela
Com as lufadas do sul,
Dando núncios da procela.
Uma avesita arribada,
Que à tarde poisou aqui,
Soltou um pio magoada;
Como eu as tenho de ti
Teve saudades, coitada!
Saudades… se breve espero
Ver-te, que estás a dois passos?
Sempre a um pai é desespero
Não ter a filha nos braços,
E eu como a filha te quero.
De passagem te direi
Que ontem, descendo o valado,
Com a casa defrontei,
E, vendo tudo fechado,
Por vergonha não chorei.
Quando do alto do casal
Me avistavam da janela,
Que alegria triunfal! …
Eras tu, e a Filomela,
E os lenços num vendaval!
«Depressa, que o tio espera,
Jantar na mesa, são horas.»
E a tentar cara severa,
E rindo como as auroras
Dos dias da primavera!
Agora vêm da invernia
As cordas d’água puxadas
Na força da ventania,
E essas janelas cerradas,
E eu sem a vossa alegria!…
Já nem sei o que escrevi…
Vou fechar a carta. Adeus!
Guarda um beijo para ti,
Dá-me um abraço nos teus,
E não te esqueças de mim.

Raimundo António de Bulhão Pato




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 1 de março de 2018




Violoncelo

Chorai arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.
Fundas, soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...
Trêmulos astros,
Soidões lacustres...
Lemes e mastros...
E os alabastros

Dos balaústres!
Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
Chorai arcadas,
Despedaçadas, Do violoncelo.

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'




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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018





Grito da Dúvida 

Há na minha alma este tormento imenso:
Um céu de estrelas todo pontilhado
Para onde quer subir meu sonho ousado,
Galgando a altura em espirais de incenso.

Foge-me a estrela que eu, alucinado,
Tento prender. E, em prantos, me convenço
Do impossível, o olhar ao céu suspenso;
Mãos erguidas, o rosto transtornado...

Ó tu que a minha vida tantalizas
Com promessas vazias, imprecisas,
Fugidias, perdidas, abstratas.

Na mais rude tragédia entre as mais rudes,
Se não me amas, por que tu me iludes?
Se tu me iludes, por que não me matas?...

Camillo de Jesus Lima




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domingo, 25 de fevereiro de 2018




Esplêndida

Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol!
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol
Em sedas multicores.

Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os seus negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
Velozes como a peste.

É fidalga e soberba. As incensadas
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bem-tom
Das cortes depravadas.

É clara como os pós à marechala,
E as mãos, que o Jock Club embalsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
Um amante, em Bengala.

É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
Atrai como a voragem!

Os lacaios vão firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com reseta, e nas librés
De forma aprimorada.

E eu vou acompanhando-a, corcovado,
No trottoir, como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejado o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.

E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
Formosa aristocrata!

Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'



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