sábado, 24 de junho de 2017




Cai a noite sobre as montanhas da Geórgia;
À minha frente ruge o Aragva.
Estou em paz e triste; há um lampejo em meus suspiros,
Meus suspiros são todos teus,
Teus, e de mais ninguém... Minha melancolia
Está insensível a angústias e apreensões,
E meu coração arde e ama mais uma vez,
Pois nada pode fazer além de amar.

Todo instante que passávamos juntos
Era uma celebração, uma Epifania,
No mundo inteiro, nós os dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases úmidos, até teu domínio
No outro lado, para além do espelho.

Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.


Arseny Tarkovski



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 23 de junho de 2017





Bailarina negra
A noite
(Uma trompete, uma trompete)
fica no jazz
A noite
Sempre a noite
Sempre a indissolúvel noite
Sempre a trompete
Sempre a trépida trompete
Sempre o jazz
Sempre o xinguilante jazz
Um perfume de vida
esvoaça
adjaz
Serpente cabriolante
na ave-gesto da tua negra mão
Amor,
Vênus de quantas áfricas há,
vibrante e tonto, o ritmo no longe
preênsil endoudece
Amor
ritmo negro
no teu corpo negro
e os teus olhos
negros também
nos meus
são tantãs de fogo

amor.


António Jacinto, poeta angolano


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 22 de junho de 2017




A Graça

Que harmonia suave
É esta, que na mente
Eu sinto murmurar,
Ora profunda e grave,
Ora meiga e cadente,
Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra,
Que para mim em tudo
Negra se reproduz,
Se aclara, e desassombra
Seu gesto carrancudo,
Banhada em branda luz?
Porque no coração
Não sinto pesar tanto
O férreo pé da dor,
E o hino da oração,
Em vez de irado canto,
Me pede íntimo ardor?

És tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem consolar a solidão do enfermo,
E a contemplar com placidez o ensina
De curta vida o derradeiro termo?

Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.
Da aurora à frouxa luz,
Me dizias: «Acorda, inocentinho,
Faz o sinal da Cruz.»
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos
De inda puro sonhar,
Em nuvem d'ouro e púrpura descendo
Coas roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente,
Me contavas mistérios, harmonias
Dos Céus, do mar dormente.
És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta
Modulavas o canto,
Que de noite, ao luar, sozinho erguia
Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente
Das paixões juvenis,
E que voltas a mim, sincero amigo,
Quando sou infeliz.
Sinta a tua voz de novo,
Que me revoca a Deus:
Inspira-me a esperança,
Que te seguiu dos Céus!...

Alexandre Herculano, in 'Antologia Poética'


quarta-feira, 21 de junho de 2017




Veio ter comigo hoje a poesia.
Há quantos anos? Desde a juventude.
Veio num raio de sol, num murmúrio de vento.
E a ilusão que me trouxe de uma antiga alegria
reinventou-me a antiga plenitude
que já não invento.

Fazia-lhe outrora poemas verdadeiros
em fornicações rápidas de galo.
Hoje não sou eu nunca por inteiro
e há sempre no que faço um intervalo.

Estamos ambos tão velhos — que vens fazer?
— a cama entre nós da nossa antiga função.
Nublado o olhar só de a ver.
E tomo-lhe em silêncio a mão.


Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'



Fonte: http://www.citador.pt/

terça-feira, 20 de junho de 2017




Uma carta de mulher

As mulheres, eu sei, não devem escrever;
Mas ouso a arte,
Pra que em meu coração de longe possas ler
Como quem parte.
Qualquer beleza que existir em minha escrita
Mostraste antes
Mas soa nova a palavra cem vezes dita,
Quando entre amantes.
Que te traga alegria! Eu fico a esperar,
Mesmo distante;
Sinto que me vou, para ver e escutar
Teu passo errante.
Não te desvies se passar uma andorinha
Sobre esse chão,
Porque acredito que era eu, fiel, quem vinha,
Tocar-te a mão.
Tu te vais, tudo se vai! Parte em viagem,
Luzes e flores,
O verão te segue e me deixa à fria aragem,
Dos dissabores.
Se só temos esperança e alarmes, no entanto,
E a vista cansa,
Dividamos pelo melhor: mantenho o pranto,
Guarda a esperança.
Não, não queria, tanto a ti estou ligada,
Te ver penar:
Querer dor a sua metade abençoada,
É se odiar.

Marceline Desbordes-Valmore


Une lettre de femme
in: Poésies Inédites, 1860.
Les femmes, je le sais, ne doivent pas écrire ;
J’écris pourtant,
Afin que dans mon cœur au loin tu puisses lire
Comme en partant.
Je ne tracerai rien qui ne soit dans toi-même
Beaucoup plus beau :
Mais le mot cent fois dit, venant de ce qu’on aime,
Semble nouveau.
Qu’il te porte au bonheur ! Moi, je reste à l’attendre,
Bien que, là-bas,
Je sens que je m’en vais, pour voir et pour entendre
Errer tes pas.
Ne te détourne point s’il passe une hirondelle
Par le chemin,
Car je crois que c’est moi qui passerai, fidèle,
Toucher ta main.
Tu t’en vas, tout s’en va ! Tout se met en voyage,
Lumière et fleurs,
Le bel été te suit, me laissant à l’orage,
Lourde de pleurs.
Mais si l’on ne vit plus que d’espoir et d’alarmes,
Cessant de voir,
Partageons pour le mieux : moi, je retiens les larmes,
Garde l’espoir.
Non, je ne voudrais pas, tant je te suis unie,
Te voir souffrir :
Souhaiter la douleur à sa moitié bénie,
C’est se haïr.

Marceline Desbordes Valmore



(trad. Sandra Stroparo & Caetano W. Galindo)
Referência:

DESBORDES-VALMORE, Marceline. 
Poésies. Préface et choix d’Yves Bonnefoy. Paris: 
Gallimard, 1983.



Foto:Painting by Serge Marshennikov

segunda-feira, 19 de junho de 2017







IMPROVISO

A palavra justa
a mim não pertence,
busco-a nessa luta
em que não se vence,
trabalho diário,
pelo amor de sempre.
                 
A palavra triste
a mim não pertence,
perco-a numa lide
cujo amor me vence,
trabalho diário
pelo amor de sempre.
                 
A palavra louca
a mim não pertence,
bebo-a noutra boca
e ela me convence,
trabalho diário
pelo amor de sempre.

Affonso Ávila
                 
De Carta do Solo, "Tendência",

Belo Horizonte, 1961.




Foto: Pesquisa Google

domingo, 18 de junho de 2017





Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.


José Saramago


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/