sábado, 3 de junho de 2017




Os Pássaros de Londres

Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres

quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos


Mário Cesariny, in "Poemas de Londres" 


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 2 de junho de 2017




Vimos chegar as andorinhas
conjugarem-se as estrelas
impacientarem-se os ventos
Agora
esperemos o verão
do teu nascimento tranquilos, preguiçosos
Tão inseparáveis as nossas fomes
Tão emaranhadas as nossas veias
Tão indestrutíveis os nossos sonhos
Espera-te um nome
breve como um beijo
e o reino ilimitado
dos meus braços
Virás
como a luz maior
no solstício de junho.



Rosa Lobato de Faria


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 1 de junho de 2017




Tempestade... 


O desgrenhamento
das ramagens... O choro vão
da água triste, do longo vento,
vem morrer-me no coração.
A água triste cai como um sonho,
sonho velho que se esqueceu...
( Quando virás, ó meu tristonho
Poeta, ó doce troveiro meu!...)
E minha alma, sem luz nem tenda,
passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará...



Cecília Meireles


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 30 de maio de 2017





Há no firmamento
Um frio lunar.
Um vento nevoento
Vem de ver o mar.
Quase maresia
A hora interroga,
E uma angústia fria
Indistinta voga.
Não sei o que faça,
Não sei o que penso,
O frio não passa
E o tédio é imenso.
Não tenho sentido,
Alma ou intenção...
Estou no meu olvido...
Dorme, coração...


Poesias. Fernando Pessoa.


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 29 de maio de 2017





A nudez da palavra que te despe.

Que treme, esquiva.

Com os olhos dela te quero ver,

que te não vejo.

Boca na boca, através de que boca

posso eu abrir-te e ver-te?

É meu receio que escreve e não o gosto

do sol de ver-te?

Todo o espaço dou ao espelho vivo

e do vazio te escuto.

Silêncio de vertigem, pausa, côncavo

de onde nasces, morres, brilhas, branca?

És palavra ou és corpo unido em nada?

É de mim que nasces ou do mundo solta?

Amorosa confusão, te perco e te acho,

à beira de nasceres tua boca toco

e o beijo é já perder-te.



António Ramos Rosa



Foto: Autor Paulo Almeida

domingo, 28 de maio de 2017





Gazel do Amor Imprevisto

O perfume ninguém compreendia
da escura magnólia de teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
entre os dentes um colibri de amor.

Mil pequenos cavalos persas dormem
na praça com luar de tua fronte,
enquanto eu enlaçava quatro noites,
inimiga da neve, a tua cinta.

Entre gesso e jasmins, o teu olhar
era um pálido ramo de sementes.
Procurei para dar-te, no meu peito,
as letras de marfim que dizem sempre,

sempre, sempre; jardim em que agonizo,
teu corpo fugitivo para sempre,
teu sangue arterial em minha boca,
tua boca já sem luz para esta morte.

Federico García Lorca,

 in 'Divã do Tamarit'


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/