sábado, 20 de maio de 2017





Inventar a pele

Então era outra vez. A mão na maçaneta
que faz girar o tempo. Éramos invisíveis
no meio da gente. Tudo era secreto, cúmplice
de nós subindo devagar. Saborear a elevação
do corpo, o ruído da madeira, a porta à espera
e o depois da porta. O outono vem depressa.
Guardar o verão, restos de sol no cimo
do escadote. Foi feliz o vestido estampado.
Havia um vento leve, a tua pele tocava a minha,
o mar passava pelos pés e ia. Sentir o teu corpo
como não ter vestido. Desço as camisolas,
a tua mão interior a inventar a pele.
Ela está ao sol com um colar que desce até ao peito.
Direita como se não doesse o tempo. Ela estará

depois de nós, e envelheceremos nas contas do colar.


Rosa Alice Branco 


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sexta-feira, 19 de maio de 2017




não me deixes morrer longe do mar
das vagas de palavras que me sussurras
quando fechas os olhos espraiando os lábios
e as tuas mãos são algas apetecidas

não me deixes morrer longe do mar
das asas aladas de pássaros vivos
que ecoam as noites em amor escritas
salgadas por temperos escondidos

não me deixes morrer longe do mar
das marés tão certas de incerteza
como a vida preceder o tempo
ou o horizonte ser infinito com rosto

não me deixes morrer longe… de ti


Margarida Vieira


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quinta-feira, 18 de maio de 2017




Amei-te com as palavras
com o verde ramo das palavras
e a pomba assustada do coração.

Amei-te com os olhos
o espelho doido dos olhos
e a sede inextinguível da boca.

Amei-te com a pele
as pernas e os pés
e todos os gritos que trago
por debaixo da roupa.

Amei-te com as mãos
As mesmas com que te digo adeus.


Rosa Lobato de  Faria




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quarta-feira, 17 de maio de 2017




MUTILAÇÕES

Escreve agora a música
que os muros trauteiam
como eu dilapidei o meu tesouro.

Desenha agora a árvore
que rebentou por dentro.
Mostra agora o coração
com uma flecha no centro.

Vivi de brilho
e cuspi ouro pela boca.
Se ninguém me quis prender
foi porque não dei caça
não dei luta
nem falei em razão de força maior
nem sequer do futuro que me escuta.

Este livro custa a abrir
e aquela porta a fechar.
Desata agora a chorar
mesmo sem querer
mesmo sem sentir.
Chora por tudo
o que não está para vir.


 Regina Guimarães
Pag 194


In “Cem Poemas Portugueses no Feminino”

Selecção e Org. de José Fanha e José Jorge Letria



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terça-feira, 16 de maio de 2017




QUEM ÉS TU
Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?
.
A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.
.
A história da noite é o gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,

E o teu andar é a beleza das estradas.

Sophia de Mello Breyner Andressen
In Obra Poética - Caminho,2010


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segunda-feira, 15 de maio de 2017





Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.
Nuno Júdice
In Poesia Reunida (D. Quixote)

Poema de amor: Carta (esboço


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