sábado, 25 de novembro de 2017





Os Anjos - I 


Eles andam no ar
com as suas vestes
longas

as asas frementes
a baterem no tempo

Vêm
da infância
a rasar a memória

a voarem o vento

Ouvia os insectos,
deitada-rente
sobre a terra

e imaginava os anjos
debruçados no espaço
a beberem o sol

Uma por uma as pétalas
Os gomos

as citilantes escamas
mais pequenas

Uma por uma as penas

a formularem a nossa memória
das asas dos anjos

Tem a força estagnada
das paredes
a respirarem através da cal do útero

num arfar
lento
menstruação contida

Os pés vão nus,
a bordejarem o voo

a controlarem o
espaço

lemes do corpo
a fixarem
as asas:

crespas e acesas
nos ombros dos
anjos

São anjos
apenas
com o corpo dos homens

num corpo de mulher

e um ligeiro crepitar
de asas
na altura dos ombros

Tem uma conotação
sexual
de aventura

com a sua vagina
entreaberta
e o seu clitóris tumefacto
e tenso
à ponta dos dedos

Desviar os lábios
dos anjos

mas entreabrir-lhes também
as coxas

os sonhos – a mente
enquanto eles observam

Quando os anjos
flutuam
sobre as tréguas

naquele segundo
em que se ouve bater
o coração das pedras

Uma flor de
amparo,

o apoio de uma
asa
no voo raso às raízes do tempo

Até ao vácuo?

Os anjos são
os olhos
da cidade

Olhos de mulher,
que voa

Tem asas de cristal
e água
os anjos que à flor-do-dia
entornam a madrugada

cintilantes e volácteis

Eles voam com as suas asas
de prazer:

os anjos da fala
– dormindo na saliva da boca

Substituir os peixes alados
por anjos
Com as suas longínquas asas
a afagar os meus ombros

Queria saber
do destino dos anjos

quando voam
no mar
dos nossos olhos

No céu líquido
dos olhos
das mulheres

Diz-me
da poesia

através da palavra
dos anjos...

Aos olhos do tempo
a transgressão
das horas

pelo dentro das nervuras
das asas

pequenos capilares de vento
onde começa a vontade
de voar

num caminhar
sedento

Têm todos os anjos
o vício:

da queda?

Maria Teresa Horta


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sexta-feira, 24 de novembro de 2017





Antífona

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras
Formas do Amor, constelarmante puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes ...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...

João da Cruz e Sousa




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quinta-feira, 23 de novembro de 2017




Fala Também Tu

Fala também tu,
fala em último lugar,
diz a tua sentença.

Fala 
Mas não separes o Não do Sim.
Dá à tua sentença igualmente o sentido:
dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanta exista à tua volta repartida entre
a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite.

Olha em redor:
como tudo revive à tua volta! —
Pela morte! Revive!
Fala verdade quem diz sombra.

Mas agora reduz o lugar onde te encontras:
Para onde agora, oh despido de sombra, para onde?

Sobe. Tacteia no ar.
Tornas-te cada vez mais delgado, irreconhecível, subtil!
Mais subtil: um fio,
por onde a estrela quer descer:
para em baixo nadar, em baixo,
onde pode ver-se a cintilar: na ondulação
das palavras errantes.


Paul Celan, in "De Limiar em Limiar"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno




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quarta-feira, 22 de novembro de 2017





Preciosa e o ar

Sua lua de pergaminho
Preciosa tocando vem
por um anfíbio sendeiro
de cristais e de louros leves.
O silêncio sem estrelas,
fugindo do sonsonete,
cai onde o mar bate e canta
sua noite cheia de peixes.
Nos altos picos da serra
carabineiros dormecem
vigiando as brancas torres
onde vivem os ingleses.
E a ciganagem da água
levanta co’ algum prazer,
carrosséis de caracóis
e ramos de pinho verde.
*
Sua lua de pergaminho
Preciosa tocando vem.
Ao vê-la se põe erguido
o vento que não dormece.
São Cristóvão desnudado,
cheio de línguas celestes,
olha a menina tocando
uma doce gaita ausente.
Moça, deixa que levante
teu vestido para ver-te.
Abre em meus dedos arcaicos
a rosa azul de teu ventre.
Preciosa atira o pandeiro
e corre sem se deter.
O vento-machão persegue
com espada incandescente.
Franze seu rumor o mar.
Olivas empalidecem.
Cantam as flautas de sombra
e o liso gongo da neve.
Preciosa, corre, Preciosa,
que te agarra o vento verde!
Preciosa, corre, Preciosa!
Olha por onde ele vem!
Sátiro de estrelas baixas
com suas línguas reluzentes.
*
Preciosa, cheia de medo,
entra na casa existente,
mais acima dos pinheiros,
consulado dos ingleses.
Assustados pelos gritos
três carabineiros vêm,
suas negras capas cingidas
e gorros em suas frentes.
O inglês dá à cigana
um copo de um morno leite,
e uma taça de genebra
que Preciosa, então, não bebe.
E enquanto conta, chorando,
a aventura àquela gente,
nas telhas de ardósia o vento,
furioso, mete-lhe os dentes.

Jacques Prévert,
tradução de Adriano Scandolara



Via: https://escamandro.wordpress.com/

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terça-feira, 21 de novembro de 2017




Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...


Alphonsus de Guimaraens



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segunda-feira, 20 de novembro de 2017




Amor

Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca.
Longe respira a vida. Aqui o sonho.
Tudo é infância de águas e colinas
Na manhã dos teus olhos.
E vôos de mãos dadas.
E cantos, cantos de infinito amor,
Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.

Envolve-se de nuvem nosso abraço.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem. Fadas e duendes
agitam instrumentos na folhagem.

Vibrátil, fina, imperceptível, fluída
orquestra ao longe. Ao fundo dos sentidos.
Dedos de flores ondeiam sobre a pele
de Céus indefinidos.

Cantam mistérios bocas fascinadas.
Abrem corolas sob a luz que as toca.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca.


Natércia Freire, 
in 'Antologia Poética'




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domingo, 19 de novembro de 2017




Vai invernar...


Eu hoje amanheci alegre,
querendo cantar...
O vento já chegou nas casuarinas,
e o sapo saiu de debaixo da laje
para um buraco no meio do pátio
onde vai se encher uma lagoa.
- Eh aguão!...
- Olá, José, arreia meu Cabiúna,
liso do casco à testa,
preto do rabo à crina,
que eu vou sair pelo cerrado afora,
a galopar, com a chuva me correndo atrás...
Ela já vem, branquinha, cheirando a água nova,
e a serra está clarinha, neblinando...
A chuva vem rolando, vem chiando,
e o vento assoviando
Galopa, Cabiúna, que a água vem vindo,
e as sementinhas do meloso seco estão dançando...


João Guimarães Rosa

  
 (1908-1967)




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