quinta-feira, 6 de junho de 2019





Mysticismo Humano



A alma é como a noute escura, immensa e azul,
Tem o vago, o sinistro, e os canticos do sul,
Como os cantos d'amor serenos das ceifeiras
Que cantam ao luar, á noute pelas eiras...
Ás vezes vem a nevoa á alma satisfeita,
E cae sombria, vaga, e meuda e desfeita...
E como a folha morta em lagos somnolentos
As nossas illusões vão-se nos desalentos!

Tem um poder immenso as Cousas na tristeza!
Homem! conheces tu o que é a natureza?...
- É tudo o que nos cerca - é o azul, o escuro,
É o cypreste esguio, a planta, o cedro duro,
A folha, o tronco a flor, os ramos friorentos,
É a floresta espessa esguedelhada aos ventos;
Não entra o vicio aqui com beijos dissolutos,
Nem as lendas do mal, nem os choros dos lutos!...

- E os que viram passar serenos os seus dias...
E curvados se vão, ás longas ventanias,
Cheio o peito de sol, atravez das florestas,
Á calma do meio dia... e dormiam as sestas,
Tranquillos sobre a eira, entre as hervas nas leivas...
Vão cansados depois, entre os ramos e as seivas,
Outra vez sob o Sol - a sua eterna crença! -
Em fructos resurgir á natureza immensa,
E, aos beijos do luar, descansarem felizes,
Da bem amada ao pé, no meio das raizes!

Morrer é livramento! oh deve saber bem
Sentir-se dilatar na Natureza mãe!
Ser tronco, ramo ou flor, nuvem, herva ou alfombra,
A rosa que perfuma, a arvore que dá sombra!
Estremecer na encosta ás nocturnas geadas,
E recortar o azul das noutes constelladas!

Oh pelo claro azul d'essas noites serenas,
Que o segador trigueiro entôa as cantilenas,
Tristes como a lua e o espinho dos martyrios,
E que atravez do azul parecem cair lyrios!...
Quando a brisa levanta as folhas indiscretas,
Noivam os rouxinoes e se abrem as violetas...
E a Natureza tem como um sabor de beijos,
Que obriga a soluçar a alma de desejos!...

Que segredos dirão nas brisas mensageiras,
Á doçura da lua, a flor das larangeiras,
O lyrio, a madresilva, os jasmins vacillantes,
Que foram já, talvez, seios fortes e amantes,
E que hoje' á branca luz dos myrthos sideraes,
Conversam sobre o amor e os gosos ideaes
Do tempo, que a fallar corriam breve as horas,
Que seus olhos leaes tinham a côr d'amoras,
E debaixo do Ceu teciam longas danças,
Ao pé da amante meiga e de compridas tranças!...

No lago somnolento a flor do nenuphar
Talvez é um coração que abre para chorar!
O lyrio um seio bom, - e as violetas curvadas
São os olhos talvez das doces bem amadas!...

Feliz o semeador que vive entre os arados,
O campo, os lentos bois, longe dos povoados,
Entre os rijos irmãos humildes e trigueiros,
Que vivem sob o sol, á chuva, aos nevoeiros,
E quando á noute finda os suarentos trabalhos,
Vem a doce mulher buscal-o nos atalhos,
Cujo olhar como a lua é tranquillo e consola,
E descanta chorando á noute na viola!...

E os que andam pelo mar, alegres e contentes,
Entre as ondas e o Ceu, saudosos, negligentes,
Entre os cantos do vento, olhos fitos nos ceus,
Entre o azul, o escuro, e os frios escarceus,
Hombro a hombro o abysmo, - abysmo sempre aos pés,
Que dormem á poesia, á lua das marés,
E morrem uma noute, ó mar, aos teus emballos,
Deixando uns olhos bons e meigos a choral-os!

Eu por mim não terei um astro bom nos Ceus,
Nem uns olhos leaes que chorem pelos meus,
E que inda a fronte mal me obscureça a magoa,
Como espelhos d'amor já sejam rasos d'agua!...
Sósinho passarei, e não irei jámais,
Pelas murtas com ella ás tardes outomnaes;
De inverno não terei os consollos do lar,
Nem do estio a doçura immensa do luar;
Meus filhos não irão jámais colher os ninhos;
Ninguem virá á tarde esperar-me nos caminhos!



António Gomes Leal, poeta português (1848- 1921)
in 'Claridades do Sul'



Fonte do poema: http://www.citador.pt/


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 5 de junho de 2019








Meu Amor



Em outro corpo vai meu amor por esta rua,
sinto seus passos embaixo da chuva,
caminhando, sonhando, como em mim já faz tempo...
Há ecos de minha voz em seus sussurros
posso reconhecê-los.
Tem agora uma idade que era a minha,
uma lâmpada que se acende ao nos encontrarmos.
Meu amor que se embeleza com o mar das horas,
meu amor no terraço de um café
com um hibisco branco entre as mãos,
vestida à antiga do novo milênio.
Meu amor que seguirá quando me for,
com outro riso e outros olhos,
como uma chama que deu um salto entre duas velas
e ficou iluminando o azul da Terra.



Eugenio Montejo, poeta venezuelano (1938-2008).




Jennifer Hudson Photography

segunda-feira, 3 de junho de 2019





Poema de Amor sobre um tema de Whitman


Entrarei silencioso no quarto de dormir e me deitarei
entre noivo e noiva,
esses corpos caídos do céu esperando nus em sobressalto,
braços pousados sobre os olhos na escuridão,
afundarei minha cara em seus ombros e seios, respirarei tua pele
e acariciarei e beijarei a nuca e a boca e mostrarei seu traseiro,
pernas erguidas e dobradas para receber,
caralho atormentado na escuridão, atacando,
levantado do buraco até a cabeça pulsante,
corpos entrelaçados nus e trêmulos,
coxas quentes e nádegas enfiadas uma na outra
e os olhos, olhos cintilando encantadores,
abrindo-se em olhares e abandono,
e os gemidos do movimento, vozes, mãos no ar, mãos entre as coxas,
mãos, na umidade de macios quadris, palpitante contração de ventres
até que o branco venha jorrar no turbilhão dos lençóis
e a noiva grite pedindo perdão
e o noivo se cubra de lágrimas de paixão e compaixão
e eu me erga da cama saciado de últimos gestos íntimos
e beijos de adeus –
tudo isso antes que a mente desperte,
atrás das cortinas e portas fechadas da casa escurecida
cujos habitantes perambulam insatisfeitos pela noite,
fantasmas desnudos buscando-se no silêncio.


Allen Ginsberg, poeta americano (1926-1997).




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/