sexta-feira, 17 de julho de 2020






III – Salmos da Noite


Ó minha amante, eu quero a volúpia vermelha
Nos teus braços febris receber sobre a boca;
Minh'alma, que ao calor dos teus lábios se engelha
E morre, há de cantar perdidamente louca.

O peito, que a uma furna escura se assemelha,
De mágicos florões o teu olhar me touca;
Ao teu lábio que morde e tem mel como a abelha,
Dei toda a vida... e eterna ela seria pouca.

Ao teu olhar, oceano ora em calma ora em fúria,
Canta a minha paixão um salmo fundo e terno,
Como o ganido ao luar de uma cadela espúria...

Salmo de tédio e dor, hausteante, negro e eterno,
E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria,
E no entanto eu te adoro, ó céu do meu inferno!



Alphonsus de Guimaraens, poeta brasileiro (1870-1921).



terça-feira, 14 de julho de 2020


Para Ser Lido Mais Tarde







Um dia
Quando já não vieres dizer-me vem
Jantar

Quando já não tiveres dificuldade
Em chegar ao puxador
Da porta quando

Já não vieres dizer-me Pai
Vem ver os meus deveres

Quando esta luz que trazes nos cabelos
Já não escorrer nos papéis em que trabalho

Para ti será o começo de tudo

Uma outra vida haverá talvez para os teus sonhos
Um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferenda

Hás-de ter alguma impaciência enquanto falo
Ouvirás com encanto alguém que não conheço
Nem talvez ainda exista neste instante

Mas para mim será já tão frio e já tão tarde

E nem mesmo uma lembrança amarga
Ou doce ficará
Desta hora redonda
Em que ninguém repara



Mário Dionísio,


in 'O Silêncio Voluntário'