sexta-feira, 6 de julho de 2018




Ascensão


Beijava-te como se sobe uma escadaria:
pedra a pedra, do luminoso para o obscuro,
do mais visível para o mais recôndito
- até que os lábios fossem
não o ardor da sede, nem sequer a magia
da subida,
mas o tremor que é pétala do êxtase,
o lento desprender do sol do corpo
com o feliz quebranto dos meus dedos.



João Rui de Sousa, in 'Obstinação do Corpo'




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 2 de julho de 2018




Os cabelos

Embora o vento passe
Já não se agitam leves. O seu sangue,
Gelando, já não tinge a sua face.
Os olhos param sob a fonte aflita.
Já nada nela vive nem se agita,
Os seus pés já não podem formar passos,
Lentamente as entranhas endurecem
E até os gestos gelam nos seus braços.
Mas os
olhos de pedra não esquecem.
Subindo do seu corpo arrefecido,
Lágrimas lentas rolam pela face,
Lentas rolam, embora o tempo passe.

Destruição


Sophia de Mello Breyner, poetisa e escritora portuguesa (1919-2004).




Foto: ZsaZsa Bellagio