sábado, 8 de julho de 2017




Saudade dentro do peito
É qual fogo de monturo
Por fora tudo perfeito,
Por dentro fazendo furo.

Há dor que mata a pessoa
Sem dó e sem piedade,
Porém não há dor que doa
Como a dor de uma saudade.

Saudade é um aperreio
Pra quem na vida gozou,
É um grande saco cheio
Daquilo que já passou.

Saudade é canto magoado
No coração de quem sente
É como a voz do passado
Ecoando no presente


Patativa do Assaré



Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 7 de julho de 2017




Haverei de te amar a vida inteira

Haverei de te amar a vida inteira.
Mesmo unilateral o bem querer,
é forma diferente de se ter,
sem nada se exigir da companheira.

Haverei de te amar a vida inteira,
(não precisa aceitar, basta saber),
pois amor que faz bem e dá prazer
a gente vive de qualquer maneira.

Eu viverei de sonhos e utopias,
realizando as minhas fantasias,
tornando cada qual mais verdadeira.

Eu te farei presente em meus instantes.
Supondo que seremos sempre amantes,
haverei de te amar a vida inteira.

Ronaldo Cunha Lima


https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 6 de julho de 2017




Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill, 
in 'No Reino da Dinamarca'


Fotos: pesquisa Google

quarta-feira, 5 de julho de 2017




O Amor, Meu Amor
Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.


Mia Couto, 
in "idades cidades divindades"


Fonte: http://www.citador.pt/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 4 de julho de 2017





I
Desta amarga existência em certo, amargo dia,
À hora da meia noite, augural e profana,
Eu, de velha doutrina, as páginas relia,
Curvo ao peso do sono e da fadiga insana.
Mal do meu pensamento a direção seguia
Por essa hora de horror em que da treva emana
Toda em funda hediondez, desoladora e fria,
Da atra recordação, a atra saudade humana.
Foi assim que senti, do meu triste aposento,
Como um leve sussurro a passar, lento e lento,
E uma leve pancada a bater nos umbrais.
Disse comigo: é alguém que pela noite fora,
Vem, retarda visita, e retarda-se agora...
A bater mansamente à porta, nada mais!...


Emílio de Meneses


Fot: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 3 de julho de 2017




Para que alguns queixumes
sejam imaculados na intimidade da boca,
permanece entre os alucinados.
Eles são os justos,
os que como as aves marinhas
pousam sobre as águas a carga da palavra,
o repouso difícil de nomear
pois dele se extrai toda alegria do pranto.
Regiões de um dúbio preciso: a poesia
ondulando transversalmente
a uma nebulosa de sangue e mel,
exposta sempre à ímpar utopia do mundo.
Para que alguma coisa
agrida o corpo onde cintilam os reflexos
e me retorne fragmento sem rasto ou cheiro.
O imaculado clarão
na circulação do sangue
dos que partiram antes da chegada.


João Rasteiro




Fonte: http://nocentrodoarco.blogspot.pt
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 2 de julho de 2017


Homenagem a Sophia  De Mello Breyner  Andresen 
poetisa e escritora portuguesa

1919/2004


Os Nossos Dedos

Os nossos dedos abriram mãos fechadas
Cheias de perfume
Partimos à aventura através de vozes e de gestos
Pressentimos paixões como paisagens
E cada corpo era um caminho
Mas um se ergueu tomando tudo
E escorreram asas dos seus braços.

Florestas, pântanos e rios
Viajamos imóveis debruçados,
Enquanto o céu brilhava nas janelas.

E a cidade partiu como um navio
Através da noite.


Sophia  De Mello Breyner  Andresen

In Coral, 1950


Fonte: http://www.avozdapoesia.com.br/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/