sexta-feira, 22 de dezembro de 2017




Litania do Natal 


A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sono, e disse: «Meu Jesus…»
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.
E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: «Meu Jesus…»
Que então me recordei do santo dia.
E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: «Meu Jesus…»
E a tarde descaiu, lenta e sombria.
E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: «Meu Jesus…»
E assim, mais uma vez, Jesus nascia.

José Régio



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quinta-feira, 21 de dezembro de 2017




A Rosa

Tu, flor de Vénus,
Corada Rosa,
Leda, fragrante,
Pura, mimosa,

Tu, que envergonhas
As outras flores,
Tens menos graça
Que os meus amores.

Tanto ao diurno
Sol coruscante
Cede a nocturna
Lua inconstante,

Quanto a Marília
Té na pureza
Tu, que és o mimo
Da Natureza.

O buliçoso,
Cândido Amor
Pôs-lhe nas faces
Mais viva cor;

Tu tens agudos
Cruéis espinhos,
Ela suaves
Brandos carinhos;

Tu não percebes
Ternos desejos,
Em vão Favónio
Te dá mil beijos.

Marília bela
Sente, respira,
Meus doces versos
Ouve, e suspira.

A mãe das flores,
A Primavera,
Fica vaidosa
Quando te gera;

Porém Marília
No mago riso
Traz as delícias
Do Paraíso.

Amor que diga
Qual é mais bela,
Qual é mais pura,
Se tu, ou ela;

Que diga Vénus...
Ela aí vem...
Ai! Enganei-me,
Que é o meu bem.

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805),
in 'A Rosa

(Cançoneta Anacreôntica)



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quarta-feira, 20 de dezembro de 2017







Água em chamas

… E ele parecia um deus ao sair do banho.

Um banho te darei como as servas de Circe o deram a Ulisses,
como essas filhas dos bosques e das fontes
e dos rios sagrados que desaguam no mar,
encho a banheira de água e sirvo-te vinho.

Misturo num jacto de água quente com outra que arrefece,
enquanto os espelhos se embaciam e o silêncio vem de mansinho;
um longo banho terás, o vinho iluminarão teu sangue,
descontrairá os músculos que eu banho com um jarro de água.

Tal como a quarta serva afastou a fadiga dos membros de Ulisses,
Continuarei a dar-te banho, para que o mundo seja do tamanho deste quarto,
onde os suaves vapores se adensam cada vez mais e as fragrâncias do teu corpo
se expandem no quarto à medida que o calor te inunda tanto por fora como por dentro.

Aproximo-me, lavo o teu pescoço e o teu peito,
acaricio o teu rosto, a tua nuca e os teus ombros,
reparo no prazer que avança à medida que depões as tuas armas,
vejo que deixas relaxar os teus ombros e mergulhas no banho.

Tem de haver água para haver vida,
e os homens precisam de banhos demorados...
ensaboo-te e enxaguo-te de novo, o teu corpo torna-se pesado,
não és só um homem mas todos os homens.

E quando te levantas do banho para emergir
és tão encantador como Telémaco
que foi banhado pela adorável donzela Policasta,
antes de ser ungido com óleo cintilante e coberto com túnica e manto.

De quem é o amor que brilha através do mundo como um rio que corre,
e porque flui tão puro como a alma
que vem em direcção a mim, tão deferente de tudo o que conheci
no labirinto do palácio onde vagueei sozinha durante tanto tempo.

Pia Tafdrup



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terça-feira, 19 de dezembro de 2017




O Beijo

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'


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segunda-feira, 18 de dezembro de 2017





Meu pobre coração que estremecias,
Suspira a desmaiar no peito meu:
Para enchê-lo de amor, tu bem sabias
Bastava um beijo teu!

Como o vale nas brisas se acalenta,
O triste coração no amor dormia;
Na saudade, na lua macilenta
Sequioso ar bebia!

Se nos sonhos da noite se embalava
Sem um gemido, sem um ai sequer,
E que o leite da vida ele sonhava
Num seio de mulher!

Se abriu tremendo os íntimos refolhos,
Se junto de teu seio ele tremia,
E que lia a ventura nos teus olhos,
É que deles vivia!

Via o futuro em mágicos espelhos,
Tua bela visão o enfeitiçava,
Sonhava adormecer nos teus joelhos...
Tanto enlevo sonhava!

Via nos sonhos dele a tua imagem
Que de beijos de amor o recendia...
E, de noite, nos hálitos da aragem
Teu alento sentia!

Ó pálida mulher! se negra sina
Meu berço abandonado me embalou,
Não te rias da sede peregrina
Dest’alma que te amou...

Que sonhava em teus lábios de ternura
Das noites do passado se esquecer...
Ter um leito suave de ventura...
E amor onde morrer!


Manuel Antônio Álvares de Azevedo




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domingo, 17 de dezembro de 2017





Poema 15

Lá, onde reina a eterna primavera,
Onde o som não Percutido soa por si só,
Onde a Luz Imaculada preenche o espaço todo;

Lá, onde milhões de bramas lêem os vedas,
Onde milhões de vishnus inclinam suas cabeças,
Onde milhões de shivas imergem em contemplação;

Lá, onde milhões de krishnas sopram suas flautas,
Onde milhões de saraswatis dedilham as douradas vinas,
Onde a miríades de deuses, anjos e iluminados vivem contentes;

Lá, nessa outra margem que poucos alcançam,
Nessa praia distante, meu amado Senhor se desvela,
E o odor de flores e pasta de sândalo perfuma esse confim

Kabir


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