sexta-feira, 11 de janeiro de 2019






Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade




Al Berto, poeta e editor português (1948-1997).



Boris Prokazov Painting

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quarta-feira, 9 de janeiro de 2019






Manhã  de Inverno

Há frio e sol: que manhã linda!
Tu, meu primor, dormes ainda.
É tempo, ó bela, de acordar.
Desvenda o olhar que o torpor cerra,
Encara a aurora sobre a terra
Qual fosses novo astro polar!
À noite, neve e tempestade
Houve e, no céu, névoa, verdade?
A mancha lívida do luar
Nos nimbos era amarelada.
Tristonha estavas e sentada;
E ora… à janela vem olhar:
Ao claro azul do céu que esplende,
Tapete raro que se estende,
A neve jaz a fulgurar;
O bosque, só, sobressai, preto;
Verdeja, sob a geada, o abeto;
Sob gelo, eis a água a lucilar.
Faz-se ambarino o quarto inteiro.
Vem estalido prazenteiro
Do recém-aceso fogão.
Meditar perto dele é grato.
Mas dize: queres que, neste ato,
A poldra parda atrele, não?
A deslizar na neve, amada,
Dar-nos-emos à galopada
Do equino e sua agitação.
Iremos ver os nus e imensos
Campos, faz pouco inda tão densos,
E a praia de minha afeição.



Aleksander Púchkin   Poeta e dramaturgo  1799–1837

(1829)




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