sábado, 2 de março de 2019






Nuvens voam pelo ar como bandos de garças,
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o
Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma na treva.

Anoiteceu.
(...)



Menotti Del Picchia





Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 1 de março de 2019







A Posse


Que súbita suspeita - dália enorme -
Passara como a sombra nos teus cílios,
Se a manhã chega enquanto de nós foge
O tempo que já tinha destruído.
Um rosto sobre o peito o que escutava?
A canção, um contorno de mamilos
Breve, se erguida a curva nas espáduas
Era o desejo, e calma, largos rios.
Cabelos desgrenhados, fugitivos,
E vento não havia, ou quase chama
Nos rins, na pele, um cancro que consome
Este pecado casto, e já os lábios
Se fecham, quando rápida ou mais funda
Em nós cresceu a ferida dos sentidos.



Fernando Guimarães



David Hamilton Photography


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019





Não tenhas medo do amor

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.



Maria do Rosário Pedreira



                                                      Do livro O Canto do Vento nos Ciprestes





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 24 de fevereiro de 2019






Paraíso



Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.



David Mourão-Ferreira, escritor e poeta português (1927- 1996).


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/