quarta-feira, 11 de janeiro de 2017



SINTO


Sinto
que em minhas veias arde
sangue,
chama vermelha que vai cozendo
minhas paixões no coração.

Mulheres, por favor,
derramai água:
quando tudo se queima,
só as fagulhas voam
ao vento.

Federico García Lorca,

in 'Poemas Esparsos'

terça-feira, 10 de janeiro de 2017



O ANJO


O Anjo que em meu redor passa e me espia,
E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me cantando no seu peito.

Ele que indiferente olha e me escuta
Sofrer, ou que feroz comigo luta,
Ele que me entregara à solidão,
Poisava a sua mão na minha mão.

E foi como se tudo se extinguisse,
Como se o mundo inteiro se calasse,
E o meu ser liberto enfim florisse,

E um perfeito silêncio me embalasse.


Sophia de Mello Breyner Andresen 

Foto: https://pt.pinterest.com

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017





A SERENATA
 
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
— só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?   

      Adélia Prado


Foto de : Karina Bertoncine

domingo, 8 de janeiro de 2017




Bailados do Luar


Pétalas de rosas
tombam lentamente, silenciosas...
E de vagar
vem entrando
a farândola rítmica
e silente
dos góticos bailados do luar!...

Sobre as dobras macias
e assediantes
da seda do meu leito desmanchado,
esguias sombras
adelgaçando afagos,
poisam no meu peito desvestido...
E a boca hipnótica e algente
do meu luarento amante,
vai esculpindo o meu corpo
pálido e vencido!...

No espaço azul e vago,
esvoaça subtiltmente
a cálida lembrança
da tua voz!

Busco a verdade viva do teu beijo
e encontro apenas
esta estranha heresia,
crispando o alvo recorte
do meu corpo magoado!...

Estilhaçam-se, vibrando
numa ânsia doentia,
os meus nervos nostálgicos,
irreverentes
empalidecendo
em dolências inocentes
o rubor do meu desejo
insaciado...

As rosas vão tombando lentamente,
devagar,
sobre a carícia dormente
e embruxada…
dos espásmicos beijos do luar...
Oiço a tua voz
em toda a parte!

E perco-me dentro dos meus próprios braços,
tumultuosos e exigentes,

                  a procurar-te!

Judith Teixeira,

in 'Antologia Poética'


Perfume da Rosa


Quem bebe, rosa, o perfume
Que de teu seio respira?
Um anjo, um silfo? ou que nume
Com esse aroma delira?

Qual é o deus que, namorado,
De seu trono te ajoelha,
E esse néctar encantado
Bebe oculto, humilde abelha?

- Ninguém? - Mentiste: essa frente
Em languidez inclinada,
Quem ta pôs assim pendente?
Dize, rosa namorada.

E a cor de púrpura viva
Como assim te desmaiou?
e essa palidez lasciva
Nas folhas quem ta pintou?

Os espinhos que tão duros
Tinhas na rama lustrosa,
Com que magos esconjuros
Tos desarmam, ó rosa?

E porquê, na hástea sentida
Tremes tanto ao pôr do sol?
Porque escutas tão rendida
O canto do rouxinol?

Que eu não ouvi um suspiro
Sussurrar-te na folhagem?
Nas águas desse retiro
Não espreitei a tua imagem?

Não a vi aflita, ansiada...
- Era de prazer ou dor? -
Mentiste, rosa, és amada,
E também tu amas, flor.

Mas ai! se não for um nume
O que em teu seio delira,
Há-de matá-lo o perfume
Que nesse aroma respira.

Almeida Garrett, 
in 'Folhas Caídas'

Foto: https://pt.pinterest.com