sábado, 1 de abril de 2017



O teu amor absoluto

O teu amor absoluto
é como a hera que envolve as paredes da casa.
Quero ser a casa
e que arranhes a cal da minha pele
e te aninhes nos meus ouvidos fendas
e perturbes a porta minha boca.
E por fim
procures o perigo das janelas
e enfrentes os meus olhos
infinitos de mágoa
noite e assombração.



Rosa Lobato de Faria


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 31 de março de 2017



Deixa-me errar alguma vez,
porque também sou isso: incerta e dura,
e ansiosa de não te perder
agora que entrevejo um horizonte.
Deixa-me errar e me compreende
porque se faço mal é por querer-te
desta maneira tola, e tonta,
eternamente recomeçando a cada dia
como num descobrimento
dos teus territórios de carne e sonho,
dos teus desvãos de música ou vôo,
teus sótãos e porões
e dessa escadaria de tua alma.
Deixa-me errar mas não me soltes


para que eu não me perca
deste tênue fio de alegria
dos sustos do amor que se repetem
enquanto houver entre nós essa magia.



Lia Luft




Painting: by Serge Marshennikov

quinta-feira, 30 de março de 2017




Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen, 
in 'Livro Sexto'





quarta-feira, 29 de março de 2017





DESVENDAI O OLHAR

Liberta, deixei para trás o casulo da crisálida.
Voei soberana vestida de asas leves.
Fiz caminho, rasei jardins. beijei flores.
Embriagada de perfume.
Subi ao topo de um cedro esguio.
Feliz embalada nos braços do vento amei a vida.
Tão longe minha visão contemplava.
Vales verdes, rios saltitantes.
O ventre da terra a explodir em flor.
colunas de fumo espessas, e translucidos seres cambaleantes.
Estremeci.
Pedi a uma ave branca leva-me até lá. disse levo. 
mas venda-me os olhos por favor. Como verás a rota então?.
Não temas, sou a paz.
Rasamos céus, adentramos poeiras.
enfrentamos chuvas ácidas.
Fizemos acrobacias para fugir das bombas que caiam como meteoritos arder, 
nas terras queimadas onde já jaziam as flores.
Esbogalhados meus olhos, seca minha boca pela sede das fontes poluidas.
Pedi á ave branca aporta aí, num cato agreste a tentar florir.
Como Borboleta duas gotas bebi.
Cansada adormeci.
Sonhei que amanhã
Na hora em que o sol nascerá
A humanidade cantará um hino de fraternidade.
Sei é sonho, ideia vã.
Visto-me de esperança.
Aconteça o milagre,
Soltas estão as aves da paz, rumo á liberdade!


Augusta Mar.



https://www.facebook.com/augustamaria.goncalves

Painting by Serge Marshennikov

terça-feira, 28 de março de 2017




Flores

De um pequeno degrau dourado ,
entre os cordões de seda,
os cinzentos véus de gaze,
os veludos verdes
e os discos de cristal que enegrecem como bronze ao sol ,
vejo a digital abrir-se sobre um tapete de filigranas
de prata, de olhos e de cabeleiras.

Peças de ouro amarelo espalhadas sobre a ágata,
pilastras de mogno sustentando uma cúpula de esmeraldas,
buquês de cetim branco e de finas varas de rubis
rodeiam a rosa d'água.

Como um deus de enormes olhos azuis e de formas
de neve, o mar e o céu atraem aos terraços de mármore
a multidão das rosas fortes e jovens.


Arthur Rimbaud


Fonte: https://pensador.uol.com.br/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 27 de março de 2017




Encontro

Se puderes
dobra essa esquina e abre os olhos
para me espreitares por dentro
Em qualquer pedaço de gesto, demora-te.
No intervalo da minha ausência
muda o tempo do verbo, mas não o próprio verbo
Desagua o verso sem pressa e faz fintas à vida
sem esquecer que a felicidade é um abraço
imprevisto
Se puderes
perde o rasto da razão mais-que-perfeita
e sorve o vento embalado num beijo inesquecível
a bater no chão fecundo do meu seio.
Se quiseres
vem com o vazio das mãos ávidas de mim
perseguindo o impensável sem curvas nem ossos
com o tempo a chiar e a tomar para si o pó dos dias
Se quiseres
ama esta inevitabilidade feita de um querer comum
e escreve sobre o amor abrigo ou inquietação
Depois
se puderes
se quiseres
sente as impronunciáveis emoções
e no obsceno arrepio que inventamos
a vida será chama sem palavras
e nada mais importará


Margarida Piloto Garcia



Painting by Serge Marshennikov