sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017




Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.



Cecila Meireles



Foto:https://pt.pinterest.com/cinafraga/

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017





Na Mão de Deus

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

Antero de Quental, in "Sonetos"



Fonte: http://www.citador.pt/
Foto: https://pt.pinterest.com/cinafraga/


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017



O Espelho de Água

O meu espelho, mais profundo que a orbe
Onde todos os cisnes se afogaram.

É um tanque verde na muralha
E no meio dorme a tua nudez ancorada.

Sobre as suas ondas, debaixo de céus sonâmbulos,
Os meus sonhos afastam-se como barcos.

De pé sobre a popa ver-me-eis sempre a cantar,
Uma rosa secreta cresce no meu peito
E um rouxinol ébrio esvoaça no meu dedo.

Vicente Huidobro, Chile
1893-1948

(O Mar na poesia da América latina)


Foto:https://pt.pinterest.com/cinafraga/

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017



Os Cinco Sentidos

São belas - bem o sei, essas estrelas,
Mil cores - divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:
      Em toda a natureza
      Não vejo outra beleza
      Senão a ti - a ti!

Divina - ai! sim, será a voz que afina
Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.
será; mas eu do rouxinol que trina
      Não oiço a melodia,
      Nem sinto outra harmonia
      Senão a ti - a ti!

Respira - n'aura que entre as flores gira,
Celeste - incenso de perfume agreste,
Sei... não sinto: minha alma não aspira,
      Não percebe, não toma
      Senão o doce aroma
      Que vem de ti - de ti!

Formosos - são os pomos saborosos,
É um mimo - de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede... sequiosos,
      Famintos meus desejos
      Estão... mas é de beijos,
      É só de ti - de ti!

Macia - deve a relva luzidia
Do leito - ser por certo em que me deito.
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
      Sentir outras carícias,
      Tocar noutras delícias
      Senão em ti! - em ti!

A ti! ai, a ti só os meus sentidos
      Todos num confundidos,
      Sentem, ouvem, respiram;
      Em ti, por ti deliram.
      Em ti a minha sorte,
      A minha vida em ti;
      E quando venha a morte,
      Será morrer por ti.


Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'



Fonte:http://www.citador.pt/

fotos:https://pt.pinterest.com/cinafraga/

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017




És Linda

És linda. 
E nem sabes quantos pedaços de beleza tive de juntar para chegar a esta conclusão. 
Para te construir, tive de misturar a conspiração das searas com a tristeza do choupo, 
a inquietação da cotovia com o cheiro lavado do vento do ocidente. 
E a firmeza repartida dos livros, com a alegria explosiva dos miosótis e a luz escura das violetas. 
Juntei depois um pouco de ansiedade das estrelas, a paciência das casas à beira da falésia, 
a espuma da terra, o respirar do sul, as perguntas de gesso que se fazem à lua. 
Acrescentei-lhe a canção das margens e pequenos pedaços da angústia do olhar. 
Não esqueci a intimidade do frio nem a dor branca que habita o coração dos muros. 
Por fim, deitei na tua pele o sono dos alperces, aos teus músculos prometi a violência das cascatas,
no teu sexo acordei a memória do universo.
A tua beleza está no meu desejo, nos meus olhos, na minha desigual maneira de te amar. 
És linda, repito. 
Mas tenta não encarar o que te digo como um elogio.


Joaquim Pessoa, 
in 'Ano Comum'


http://www.citador.pt/

Fotos:https://pt.pinterest.com/cinafraga/

domingo, 12 de fevereiro de 2017




GOSTO DE SENTIR SAUDADE

gosto de sentir saudade
escalar o corrimão do som e da cor
captar com lábios abertos
cheiros congelados

gosto da minha solidão
suspensa mais alto
do que uma ponte
que abraça o céu com as mãos

e do meu amor
que pisa descalço
na neve

          De O dia de hoje (1963)

Halina Poswiatowska

Tradução: Magdalena Nowinska


Foto:https://pt.pinterest.com/cinafraga/