sábado, 16 de março de 2019





Posse II

Ele  

Seduzir o cotidiano pelo corpo.
Penetrá-lo deste brilho longo,
compacto,
onde o cansaço não é tédio
mas úmido intervalo.

A paisagem não sustenta
mais os olhos; estrelas
despojaram-se dos monólogos,
a flor voltou a si, não mais
dizer exausto, a primavera guardou
sua intimidade no discurso
das árvores, e o amor,
esgarçado de imagens,
procurou outro equilíbrio
além da frase, de um silêncio
a outro.

Nem sempre a paz levou-nos
a suas tácitas paragens:
a liberdade aspirou um ser estranho,
em que de novo nos olhássemos.

No corpo prosseguimos
onde o amor parava.
E inventamos. Sem palavras
tornamos nossa a carne da manhã,
a exaurir o tempo, sem fidelidade
alguma, no dia imprevisível,
além do nosso invento.


Lupe Cotrim Garaude, poetisa brasileira (1933-1970).
in 'Inventos'




Fonte: http://www.citador.pt/

Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.