domingo, 12 de janeiro de 2020






A Rendeira



Rendeira, boa rendeira
não deixarás de tecer,
que o tecido é trabalheira,
que a gente, queira ou não queira,
há de ter a vida inteira,
como castigo e prazer...

Desde que o dia amanhece,
rendeira tece que tece,
não pára de tecer...

E o branco urdume entretece,
com o alvor da sua prece
roubado do amanhecer!

Tem na renda o seu cuidado,
tece-a para o seu noivado...
Mais alva não pode ser!

Mas por arte do malvado,
não tinha o lavor findado,
fere a sua nívea mão...

E o sangue corre encarnado
mancha-lhe todo o rendado...
Quanta dor no coração!

E a rendeira se entristece,
pois na renda que ela tece,
a imagem da vida tem,
cujo tecido oferece
manchas de sangue também...

Rendeira boa rendeira,
não deixarás de tecer,
que o tecido é trabalheira,
que a gente, queira ou não queira,
há de ter a vida inteira,
como castigo e prazer...





Bento Prado Júnior,

filósofo, escritor e poeta brasileiro (1937-2007).




Foto: https://www.pinterest.pt

sábado, 28 de dezembro de 2019







Pouco acima daquela alvíssima coluna
Que é o seu pescoço, a boca é-lhe uma taça tal
Que, vendo-a, ou, vendo-a, sem, na realidade, a ver,
De espaço a espaço, o céu da boca se me enfuna
De beijos — uns, sutis, em diáfano cristal
Lapidados na oficina do meu Ser;
Outros — hóstias ideais dos meus anseios,
E todos cheios, todos cheios
Do meu infinito amor . . .
Taça que encerra
Por suma graça
Tudo que a terra de bom produz!
Boca!
O dom possuis de pores louca a minha boca
Taça de astros e flores, na qual esvoaça meu ideal!
Taça cuja embriaguez
Na via-láctea do Sonho ao céu conduz!
Que me enlouqueças mais... e, a mais e mais, me dês
O teu delírio... a tua chama... a tua luz...




Hermes Fontes, compositor e poeta brasileiro (1888-1930).

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019





Me callo, grito. 
No hay un momento para gritar o para callar. 
Tú eres mi único grito. 
Tú eres mi único silencio.





Mahmud Darwish

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019






Este é o inverno



Um frio de leve vem para ficar.
A brisa suave faz a árvore balançar.
O vento sopra assobiando.
O céu escuro vai ficando.
As nuvens passam de mansinho.
A chuva chega devagarinho.
As pessoas correm abrindo guarda-chuvas.
Vi um homem de casaco
E uma mulher de luvas.
É esse o inverno sorrateiro.
Vem chegando e nem avisa primeiro.



Clarice Pacheco


https://www.pinterest.pt

sábado, 21 de dezembro de 2019






Repenso o teu sorriso e é para mim como uma água límpida
retida por acaso entre as pedras de um rio,
exíguo espelho onde contemplas uma hera e seus corimbos;
e tudo sob o abraço de um branco céu tranqüilo.

Esta é a minha lembrança; não sei dizer, faz tanto tempo,
se de teu rosto surge livre uma alma ingênua,
ou se em verdade és dos errantes que o mal do mundo exaure
e o sofrimento carregam como um talismã.

Mas posso dizer-te isto, que teu rosto recordado
afoga a mágoa inconstante numa onda de calma,
e que tua figura se insinua em minha memória nevoenta
imaculada como a copa de uma jovem palmeira...



Eugenio Montale


(tradução: Geraldo H. Cavalcanti)



Foto: Casey Baugh art

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sexta-feira, 20 de dezembro de 2019





Último Poema


É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
Do Pessoa ou nos bosques
Da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
Entre o fulgor dos cravos
E os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
Dentro de casa
Não devia queixar-se de estar só,
Não devia.



Eugénio de Andrade, in 'Rente ao Dizer'





Mary and Baby Jesus by Ray Downing See

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019






Chove. É Dia de Natal



Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.



Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'





Fonte:  http://www.citador.pt/