sábado, 17 de fevereiro de 2018




Elegia


Um dia, amor, tudo o que existe agora,
Tudo o que forma o nosso grande orgulho,
A pureza e o esplendor de nossas almas,
Terá morrido, sem deixar lembrança,
Na velha terra indiferente aos homens.

Nada do que hoje nos parece eterno
Terá ficado do naufrágio imenso.

Esquecidas de nós, as novas almas
Levantarão para as estrelas mudas
O milagre feliz dos novos sonhos,
Sem talvez meditar que a terra outrora
Vira prodígios e deslumbramentos
Semelhantes aos seus, sob um céu puro.

Uma névoa de pó terá coberto
As cidades vaidosas, onde os homens
Hoje, lutando, desvairados, sofrem.
E apenas raros monumentos tristes
Lembrarão, no candor da branca pedra,
A fronte sacratíssima de um sábio,
De um herói, de um guerreiro, de um poeta,
Que a glória cinja com a divina palma.

Novos deuses, em templos majestosos,
Receberão, no plácido silêncio,
O murmúrio das preces comovidas,
O perfumado fumo das oblatas
E o amor das multidões...
Ah! nesse tempo
Eu terei recebido dos destinos
O bem do esquecimento imperturbável...
Deste homem que hoje sou - das minhas crenças,
Dos meus sonhos de amor, dos meus desejos,
Das minhas ambições mais rutilantes -
Nada mais restará, nada, na terra!

Mas, quem sabe? Talvez, um dia, um homem,
Amigo das pesquisas minuciosas,
Visite longamente as bibliotecas,
Onde durmam os livros seculares,
Que as traças lentas vão destruindo a custo.
E esse homem, cheio de um amor antigo,
Curioso do viver das eras mortas,
Talvez encontre, entre outros livros velhos,
Estes versos que escrevo, e em que minha alma
Fala à tua alma em longas confidências.

E então, meu lindo amor, como evadidos
De um sepulcro, nós dois ressurgiremos
Aos olhos caridosos desse amigo,
Vindos das densas sombras do passado.


Múcio Leão, poeta e jornalista brasileiro 1898/1969

 (Poesias, 1949.)



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domingo, 11 de fevereiro de 2018




Bondade

A Bondade baila em meu lar.
Dona Bondade, quanta beleza!
As pedras azul-escarlates de seus anéis
Espargem-se nas janelas, os espelhos
Transbordam de alegria.
O que é mais puro que o choro de um filho?
O choro de um coelho pode ter mais ardor
Mas ele não tem alma.
O açúcar cura tudo, diz a Bondade.
Açúcar um fluido necessário,
Seus cristais um pequeno cataplasma.
Ó Bondade, bondade
Colando os cacos com doçura!
Minhas sedas japonesas, desesperadas borboletas,
Alfinetadas a qualquer minuto, anestesiadas.
E lá vem você, com uma xícara de chá
Envolta em fumaça.
O fluxo sanguíneo é poesia,
Impossível estancá-lo.
Você me confia dois filhos, duas flores.

Sylvia Plath, escritora estadunidense  1932/1963

(tradução de Maryluci Prado)



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sábado, 10 de fevereiro de 2018




Definição de poesia

Um risco maduro de assobio.
O trincar do gelo comprimido.
A noite, a folha sob o granizo.
Rouxinóis num dueto desafio.

Um doce ervilhal abandonado
A dor do universo numa fava.
Fígaro: das estantes e flautas –
Geada no canteiro, tombado.

Tudo o que para a noite releva
Nas funduras da casa de banho,
Trazer para o jardim uma estrela
Nas palmas úmidas, tiritando.

Mormaço: como pranchas na água,
Mais raso. Céu de bétulas, turvo.
Se dirá que as estrelas gargalham,
E no entanto o universo está surdo.

Boris Pasternak



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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018




Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

Sophia de Mello Breyner Andresen




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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018




Olhei a manhã.
As rolas bravas em requebro de asas dançam
Ensaiam voos nupciais.
Dou ao meu olhar as rendas finas inacabadas da manhã.
Porque te vestes olhar meu de saudade?
No peito há movimento de asas.
Elevo as mãos.
Dou ao sopro de brisa minhas aves.
Brancas…
Raiadas de suspiros ternos, doces.
Procuro beber na taça dos dias o orvalho puro.
Passeio-me por entre as ervas verdes rociadas.
Tantos colares adornam o peito das árvores.
Sigo… Lá longe já os melros fazem sua festa de vida.
Celebram as aves inocentes a ventura dos ninhos.
Tudo acorda.
Já a flor da amendoeira empresta seu delicado perfume ao vento.
Estou suspensa entre a realidade do momento
Tento esse equilíbrio entre o hoje e o voo dessa ave solta do meu peito.
A saudade.

Eu!
Augusta Mar.



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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018




Poesia Depois da Chuva

A Maria Guiomar

Depois da chuva o Sol - a graça.
Oh! a terra molhada iluminada!
E os regos de água atravessando a praça
- luz a fluir, num fluir imperceptível quase.

Canta, contente, um pássaro qualquer.
Logo a seguir, nos ramos nus, esvoaça.
O fundo é branco - cal fresquinha no casario da praça.

Guizos, rodas rodando, vozes claras no ar.

Tão alegre este Sol! Há Deus. (Tivera-O eu negado
antes do Sol, não duvidava agora.)
Ó Tarde virgem, Senhora Aparecida! Ó Tarde igual
às manhãs do princípio!

E tu passaste, flor dos olhos pretos que eu admiro.
Grácil, tão grácil!... Pura imagem da Tarde...
Flor levada nas águas, mansamente...

(Fluía a luz, num fluir imperceptível quase...)

Sebastião da Gama, in 'Pelo Sonho é que Vamos'



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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018




Ninho Azul

(...)

O nome da habitante... é um pecado dizê-lo:
A luz do seu olhar, o ouro do seu cabelo
Não têm rivais nos sóis nem nas manhãs serenas
E claras: é uma flor entre outras mais pequenas...
Quando ela sai de casa, um instante, a passeio,
Se deixa, descuidosa, o tesouro do seio
Fugir da renda, em toda a extensão da alameda
Erra um perfume quente e sensual que embebeda...
Acende-se o vergel ao seu encanto, como
À onda clara de luz um verdejante pomo;
E no alto da montanha, e por todo o valado,
Embaixo, em cima, o sol, mais quente e mais dourado
Rutila. Enche-lhe a veste o olor das brancas pomas...
Se pisa a alfombra, no ar uma oblata de aromas
Se eleva; e as flores vão beijar-lhe os flancos, uma
Por uma, e o róseo pé feito de jaspe e espuma...
Guarda na fina pele, em ondas voluptuosas,
A neve dos jasmins e a púrpura das rosas;
E da ânsia e do prazer toda a volúpia louca
Eletriza-lhe o seio e esbraseia-lhe a boca.
Se o vento rodomoinha em torno, ou, brisa terna,
Quer descobrir-lhe o pé e acariciar-lhe a perna,
Ou, com a fúria brutal de um desvairado amante,
Cobiçoso, se afoita a caminhar por diante,
Bebendo da alva pele o aroma capitoso
Naquele céu de carne onde lateja o gozo,
A alva do seu roupão busca logo escondê-la
Como uma nebulosa ocultando uma estrela.

Osório Duque-Estrada, 
poeta, crítico literário e teatrólogo brasileiro 1870/1927



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