terça-feira, 17 de abril de 2018



Gabriel García Márquez, escritor, jornalista, editor, ativista e político colombiano 1927/2014


Controlar a Timidez

Nunca consegui controlar a timidez. Quando tive que enfrentar em carne viva a incumbência que nos deixou o pai errante, aprendi que a timidez é um fantasma invencível. De cada vez que tinha que solicitar um crédito, mesmo dos combinados de antemão em lojas de amigos, demorava horas em redor da casa, reprimindo a vontade de chorar e as contracções da barriga, até que me atrevia por fim, com as mandíbulas tão apertadas que não me saía a voz. Havia sempre algum comerciante sem coração para me atrapalhar ainda mais: «Miúdo parvo, não se pode falar com a boca fechada.» Mais de uma vez regressei a casa com as mãos vazias e uma desculpa inventada por mim. Mas nunca mais tornei a ser tão desgraçado como da primeira vez que quis falar pelo telefone na loja da esquina. O dono ajudou-me com a operadora, pois ainda não existia o serviço automático. Senti o sopro da morte quando me deu o auscultador. Esperava uma voz serviçal e o que ouvi foi o latido de alguém que falava no escuro ao mesmo tempo que eu. Pensei que o meu interlocutor também não me ouvia e levantei a voz tanto quanto pude. O outro, enfurecido, também elevou a sua voz:
- E tu, porque carago me gritas!

Desliguei, aterrado. Devo admitir que, apesar da minha febre de comunicação, tenho ainda que reprimir o pavor do telefone e do avião e não sei se me vem desses dias. Como podia conseguir fazer qualquer coisa? Por sorte, a minha mãe repetia com frequência a resposta: «É preciso sofrer para servir.»

Gabriel García Marquez, in 'Viver para Contá-la'



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segunda-feira, 16 de abril de 2018




Visita-me Enquanto não Envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

Tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

Ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

Antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

Perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

Com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te


Al Berto, in 'Salsugem'


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domingo, 15 de abril de 2018





Lagryma negra


Aperte fortemente a penna ingratta
entre os dêdos nervosos e trementes,
e os versos jórram, claros e estridentes,
n'uma cascata, n'uma cataracta!


Escrevo, e canto cânticos ardentes,
enquanto dos meus olhos se desata
uma fiada de lagrymas de prata
como um collar de pérolas pendentes...


Eu canto o soffrimento, a ancia incontida
de amor, que é a maior ancia desta vida,
- vida a que a Humanidade se condemna!


E todo o meu sofrer, todo, se pinta
n'este pingo de dor pingo de tinta,
lagryma negra que me cáe da penna.

Dante Milano, poeta brasileiro 1899/1991




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sábado, 14 de abril de 2018




Poema da amante


Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.


Adalgisa Nery




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sexta-feira, 13 de abril de 2018





Il Bacio

O Beijo! malva-rosa em jardim de carícias!
Vivo acompanhamento no piano dos dentes
Dos refrãos que Amor canta nas almas ardentes
Com a sua voz de arcanjo em lânguidas delícias!

Divino e gracioso Beijo, tão sonoro!
Volúpia singular, álcool inenarrável!
O homem, debruçado na taça adorável,
Deleita-se em venturas que nunca se esgotam.

Como o vinho do Reno e a música, embalas
E consolas a mágoa, que expira em conjunto
Com os lábios amuados na prega purpúrea...
Que um maior, Goethe ou Will, te erga um verso clássico.

Quanto a mim, trovador franzino de Paris,
Só te ofereço um bouquet de estrofes infantis:
Sê benévolo e desce aos lábios insubmissos
De Uma que eu bem conheço, Beijo, e neles ri.


Paul Verlaine, in "Caprichos"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral



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quinta-feira, 12 de abril de 2018




Bucólica

Na orgia dos sons, das cores,
ficou minha alma pagã;
bebendo o aroma das flores,
bebeu a luz da manhã.

Abriu-se-me a flor da vida
sob um sol fecundo e ardente;
amo a palmeira florida
e o soluçar da torrente...

Tenho taças de verdura
junto aos troncos seculares,
em que bebo a linfa pura
do néctar que vem dos ares.

Entendo o canto das aves,
que agitam o azul dos céus,
como de um templo nas naves
as litanias de Deus.

Nas clareiras escalvadas
das grandes, floridas matas,
choram frescas alvoradas
de pérolas as cascatas.

Entro altivo nas imensas
babilônias vegetais,
sob as lianas suspensas,
como arcadas triunfais.

Nas voltas da trepadeira,
leio estéticos segredos
e aprecio a sobranceira
atitude dos rochedos...

A natureza é uma mestra,
uma mestra maternal,
que nos dá lições de orquestra
e nos ensina o ideal.

Na orgia dos sons, das cores,
ficou minha alma pagã;
bebendo o aroma das flores,

bebeu a luz da manhã.

Augusto de Lima,

in"Contemporâneas". 1887.




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quarta-feira, 11 de abril de 2018




Castelã de Tristeza

Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sòzinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor…
E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês?…A quem?…
-E o meu olhar é interrogador-
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr…
Chora o silêncio…nada…ninguém vem…

Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais?…

À noite, debruçada, plas ameias,
Porque rezas baixinho?…Porque anseias?…
Que sonho afagam tuas mãos reais?…

Florbela Espanca

In; Livro de Mágoas




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