quinta-feira, 12 de abril de 2018




Bucólica

Na orgia dos sons, das cores,
ficou minha alma pagã;
bebendo o aroma das flores,
bebeu a luz da manhã.

Abriu-se-me a flor da vida
sob um sol fecundo e ardente;
amo a palmeira florida
e o soluçar da torrente...

Tenho taças de verdura
junto aos troncos seculares,
em que bebo a linfa pura
do néctar que vem dos ares.

Entendo o canto das aves,
que agitam o azul dos céus,
como de um templo nas naves
as litanias de Deus.

Nas clareiras escalvadas
das grandes, floridas matas,
choram frescas alvoradas
de pérolas as cascatas.

Entro altivo nas imensas
babilônias vegetais,
sob as lianas suspensas,
como arcadas triunfais.

Nas voltas da trepadeira,
leio estéticos segredos
e aprecio a sobranceira
atitude dos rochedos...

A natureza é uma mestra,
uma mestra maternal,
que nos dá lições de orquestra
e nos ensina o ideal.

Na orgia dos sons, das cores,
ficou minha alma pagã;
bebendo o aroma das flores,

bebeu a luz da manhã.

Augusto de Lima,

in"Contemporâneas". 1887.




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 11 de abril de 2018




Castelã de Tristeza

Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sòzinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor…
E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês?…A quem?…
-E o meu olhar é interrogador-
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr…
Chora o silêncio…nada…ninguém vem…

Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais?…

À noite, debruçada, plas ameias,
Porque rezas baixinho?…Porque anseias?…
Que sonho afagam tuas mãos reais?…

Florbela Espanca

In; Livro de Mágoas




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 7 de abril de 2018




Ruinas

Pandeiros rôtos e côxas táças de crystal aos pés da muralha.
Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em bandolins distantes, surdinas finas de princezas mortas.
Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mãos esguias e de cabelleiras embranquecidas.
Aquellas ameias cingiram uma noite peccados sem fim; e ainda guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha todas as noites réza a chorar: Era uma vez em tempo antigo um castello de nobres naquelle lugar... E a lua, a contar, pára um instante - tem mêdo do frio dos subterraneos.
Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e rizinhos de sêdas.
Aquellas ruinas são o tumulo sagrado de um beijo adormecido - cartas lacradas com ligas azues de fechos de oiro e armas reais e lizes.
Pobres velhinhas da côr do luar, sem terço nem nada, e sempre a rezar...
Noites de insonia com as galés no mar e a alma nas galés.
Archeiros amordaçados na noite em que o côche era de volta ao palacio pela tapada d'El-rei. Grande caçada na floresta--galgos brancos e Amazonas negras. Cavalleiros vermêlhos e trombêtas de oiro no cimo dos outeiros em busca de dois que faltam.
Uma gondola, ao largo, e um pagem nas areias de lanterna erguida dizendo pela briza o aviso da noite.
O sapato d'Ella desatou-se nas areias, e fôram calça-lo nas furnas onde ninguem vê. Nas areias ficaram as pègadas de um par que se beija.
Noticias da guerra - choros lá dentro, e crépes no brazão. Ardem cirios, serpentinas. Ha mãos postas entre as flôres.
E a torre morêna canta, molenga, dôze vezes a mesma dôr.

Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1'
1893/1970


Fonte: http://www.citador.pt/
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sexta-feira, 6 de abril de 2018




Sombras Amigas

Sombras da noite, leves como as aves,
Aconchegos e frêmitos de amores,
Que em nossas asas de esquisitas cores
Subam para o Alto os meus anseios graves.

Sombrfas flébeis, tenuíssimas, suaves,
Emigras de um chão de negras flores,
Levari-me as mágoas e as secretas dores
Pelas mais altas e silenciosas naves...

Ascendendo às alturas das montanhas,
Que os meus anseios de ferais entranhas,
Que todo esse clamor de ansiedade,

Erre junto de nós, sombras da noite,
E numa estrela rútila se acoite,
Em busca de repouso e de piedade.

Juvêncio de Araújo Figueiredo 1865/1927

Versos Antigos, 1966




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terça-feira, 3 de abril de 2018






VIII

Ai dos que vivem, se não fora o sono!
O sol, brilhando em pleno espaço, cai
Em cascatas de luz; desce do trono
E beija a terra inquieta, como um pai.

E surge a primavera. O áureo patrono
Da terra é sempre o mesmo sol. Mas ai
Da primavera, se não fora o outono,
Que vem e vai, e volta, e outra vez vai.

Ao níveo luar que vaga nos outeiros
Sucedem sombras. Sempre a lua tem
A escuridão dos sonhos agoureiros.

Tudo vem, tudo vai, do mundo é a sorte…
Só a vida, que se esvai, não mais nos vem.
Mas ai da vida, se não fora a morte!



– Alphonsus de Guimaraens



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sexta-feira, 30 de março de 2018





Arte poética

a Charles Morice

Música acima de qualquer cousa,
E prefere o Ímpar, menos vulgar,
Que é bem mais vago e solúvel no ar,
Que nada pesa e que em nada pousa.
É bom também que saibas medir
Teus termos, não sem certo descuido:
Nada melhor do que o poema fluido
Que ao Indeciso o Preciso unir.
É um lindo olhar entre rendas raras,
É a luz que treme ao sol vertical,
É, por um céu de calma outonal,
A mescla azul das estrelas claras!
Nós só queremos o meio-tom,
Nada de Cor, somente a Nuança!
Oh! A Nuança é que faz a aliança
Do sonho ao sonho e do som ao som!
Evita sempre a Ponta daninha,
O cruel Espírito e o Riso alvar,
Que apenas fazem o Azul chorar,
E esse alho, enfim, de baixa cozinha!
Toma a eloquência e esgana-a! Farás
Bem em agir energicamente,
Tornando a Rima um tanto obediente.
Quem sabe lá do que ela é capaz?
Oh! quem diria os males da Rima?
Que criança surda, ou negro imbecil
Terá forjado essa joia vil
Que soa falsa e vã sob a lima?
Música, sempre e cada vez mais!
Seja o teu verso a cousa evolada
Que vem a nós de uma alma exilada
Em outros céus para outros ideais.
Seja o teu verso a boa aventura
Esparsa ao áspero ar da manhã,
Que vai cheirando a giesta e hortelã…
E tudo mais é literatura.


Paul Verlaine, poeta francês 1844/1896



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quinta-feira, 29 de março de 2018




Os  Seios

Como serpente arquejante
Se enrosca em férvida areia,
Meu ávido olhar se enleia
No teu colo deslumbrante.

Quando o descobres, no ar
Morno calor se dissolve
Do aroma, em que ele se envolve,
Como em neblina o luar.

Se ao corpo te enrosco os braços,
A terra e os céus estremecem,
E os mundos febris parecem
Derreter-se nos espaços!

E tu nem sequer presumes
Que então, querida, até creio,
Sorver, desfeito em perfumes,
Todo o sangue do teu seio.

Depois que aspiro, ansiado,
Do teu níveo colo o incenso,
Minh'alma semelha um lenço
De viva essência molhado.

Deixa que a louca se deite
Nesse torpor, que extasia,
E que o vinho do deleite
Me espume na fantasia;

Pois não há ópio ou haschis
Que me abrilhante as idéias
Como as fragrâncias sutis
Que fervem nas tuas veias!

Teófilo Dias, político e poeta brasileiro 1854/1889

Publicado no livro Fanfarras (1882)


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