sexta-feira, 22 de outubro de 2021

 

 


 

 

Espero

 

Espero sempre por ti o dia inteiro,

Quando na praia sobe, de cinza e oiro,

O nevoeiro 

E há em todas as coisas o agoiro

De uma fantástica vinda. 

 

 

 Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 5 de outubro de 2021

 

 


 

Perfil de escrava 

 

 

 Quando os olhos entreabro à luz que avança, 

Batendo a sombra e pérfida indolência, 

Vejo além da discreta transparência 

Do alvo cortinando uma criança. 

Pupila de gazela - viva e mansa, 

Com sereno temor colhendo a ardência 

Fronte imersa em palor..

Rir de inocência, 

Rir que trai ora angústia, ora esperança... 

Eis o esboço fugaz da estátua viva, 

Que - de braços em cruz - na sombra avulta 

Silenciosa, atenta, pensativa! Estátua? 

Não, que essa cadeia estulta 

Há de quebrar-se, mísera, cativa, 

Este afeto de mãe, que a dona oculta! 

 

 

Narcisa Amália, em "Nebulosas". 1872. 

 

Narcisa Amália de Campos - poeta, republicana, abolicionista e feminista do século XIX 

A poeta esquecida do século XIX

domingo, 3 de outubro de 2021

 

 


 

Trouxe-te um ramo de frésias já que não te podia trazer um rio...

 

 Jorge Sousa Braga

domingo, 22 de agosto de 2021

 
 
 

Meditação do Duque de Gândia sobre a morte de Isabel de Portugal

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Nunca Mais

 

 

A tua face será pura limpa e viva,

Nem teu andar como onda fugitiva

Se poderá nos passos do tempo tecer.

E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

A luz da tarde mostra-me os destroços

Do teu ser. Em breve a podridão

Beberá os teus olhos e os teus ossos

Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver

Sempre,

Porque eu amei como se fossem eternos

A glória, a luz e o brilho do teu ser,

Amei-te em verdade e transparência

E nem sequer me resta a tua ausência,

És um rosto de nojo e negação

E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Nunca mais te darei o tempo puro

Que em dias demorados eu teci

Pois o tempo já não regressa a ti

E assim eu não regresso e não procuro

O deus que sem esperança te pedi.

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Sophia de Mello Breyner Andresen

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https://www.youtube.com/watch?v=7IKICVSMRys&t=24 



O mistério do falso poema de Sophia que se tornou viral está desvendado. Foi escrito em 2009 pela juíza Adelina Barradas de Oliveira

 

Fonte:

  https://www.publico.pt/2019/02/15/culturaipsilon/noticia/poema-juiza-escreveu-sophia-celebrizou-1862062




 

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Vem comigo

 

 


 

 

Vem comigo ver as pirâmides fantásticas do vento

No interior luminoso da terra encontrarás 

O segredo de quartzo para desvendares o tempo 

Onde contemplamos a fulva doçura das cerejas 

Iremos para onde os restos de vida não acordem 

A dor da imensa árvore a sombra 

Dos cabelos carregados de pólenes e de astros 

Crescemos lado a lado com o dragão 

O súbito relâmpago dos frutos amadurecendo 

Iluminará por um instante as águas do jardim 

E o alecrim perfumará os noctívagos passos 

Há muito prisioneiros no barro 

Onde o rosto se transforma e morre 

E já não nos pertence 

Vem comigo 

Praticar essa arte imemorial de quem espera 

Não se sabe o quê junto à janela 

Encolho-me 

Como se fechasse uma gaveta para sempre 

Caminhasse onde caiu um lenço 

Mas levanto os olhos 

Quando o verão entra pelo quarto e devassa 

Esta humilde existência de papel 

Vem comigo 

As palavras nada podem revelar 

Esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo 

Pegando fogo ao corpo mais próximo do meu 

 

Al Berto 

 

(in O Medo, Assírio & Alvim)

terça-feira, 16 de março de 2021


 

 

 

A exaltação da pele

 

 

Hoje quero com a violência da dádiva interdita.

Sem lírios e sem lagos

E sem gesto vago

Desprendido da mão que um sonho agita.

Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu

Suspensa de mundos cintilantes pelas veias

Metade fêmea metade mar como as sereias.

 

Natália Correia, ativista social e escritora portuguesa (1922-1993).

in "Poemas". 1955.

 

 

Julia Borodina Photography

 

 

 

terça-feira, 9 de março de 2021


 


Ao teu corpo colou-se o vestido de seda

 como uma segunda pele entre os seios pequenos

 Viceja perene um raminho de cravos

 

Saul Dias