sexta-feira, 27 de setembro de 2019






Esta aragem
é o sopro do tempo
desfazendo a tua imagem.



 Lenilde Freitas





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 4 de setembro de 2019





Explicação da Eternidade



Devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.



José Luís Peixoto, escritor, dramaturgo e poeta português. 1974


in A Casa, A Escuridão




Imagem: By Alexandra Bochkareva

domingo, 1 de setembro de 2019





Gosta Sempre de Mim


Gosta sempre de mim. Imagino o frio que aí estará, a nossa casa de que me hei-de lembrar sempre, apesar de nunca mais voltarmos para lá, o porteiro, a rua, os móveis, a cozinha, a cama com o cobertor ao meio, as gravuras, e vejo como fui feliz aí contigo, como tenho sido sempre feliz contigo, como gostaria de voltar, de voltar depressa para poder ver-te, tocar-te, falar-te, meter a minha chave na fechadura do teu corpo, a língua na tua boca, apertar-te o peito com as mãos, morder-te o pescoço, voar, lembro-me de pormenores absurdos, do sinal do peito do teu pé, do teu dente de ouro, do canal da tua nuca, e gosto absurdamente de todos: minha senhora, eu amo-a. Se eu não a conhecesse persegui-la-ia pelas ruas com propostas sórdidas e veementes. Recordo-me do primeiro dia em que a vi, do seu perfil de Boticelli, recordo-me do ano seguinte na praia, do seu cabelo preso atrás e da sua risca ao meio, do seu aspecto de retrato de Ingres, recordo-me do seu cabelo cortado e do seu ar de midinette, e amo perdidamente todas as suas encarnações, sem poder escolher entre elas. Amo a sua gravidez, os seus gestos, os seus sorrisos e as suas fúrias. Amo as suas zangas e a solenidade calada e digníssima dos seus amuos. Amo as suas recriminações e os seus beijos. E amo o seu filho, o filho de Vossa Excelência, meu amor.



António Lobo Antunes, in 'Cartas da Guerra (14 Jan 1971)'




Fonte do poema: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 30 de agosto de 2019







(...)

Porém, voltavas e, então,
Os cardos davam camélias,
Os alecrins, açucenas,
As aves, brancos lilases,
E as ruas, todas morenas,
Eram tapetes de flores
Onde havia musgo, apenas...



Pequeno trecho do poema "Cisne" 

Pedro Homem de Mello, in "Adeus"




Zhang Jingna photography




sexta-feira, 23 de agosto de 2019





Noturno 


A noite desliza pelos campos,
As mãos das nuvens passam pelo horizonte
E a escuridão dorme,
Em impressionante calmaria,
Sob as asas do silêncio.

Só se ouve o arrulho das pombas,
O murmúrio gemente dos córregos
E um ruído de passos na escuridão
Que caminham suavemente.

Sento, entregando-me à calma da noite,
Contemplo a cor da triste escuridão,
Lanço meus cantos ao espaço
E choro por todos os corações ingênuos.

Ouço o sussurro das palmeiras,
A chuva que cai na noite,
Os gemidos de uma rola na escuridão
Que canta longe entre os galhos
E a queixa distante de um moinho
Que geme na noite e chora de fadiga.
Seus gritos atravessam meus ouvidos
E vai morrer por trás das colinas.

Escuto... só se ouve as plantas.
Olho... só se vê a escuridão.
Nuvens, silêncio e uma noite triste.
Como não me sentir aflita?

A vida para mim é como esta noite:
Trevas, melancolia, desesperança,
Enquanto os demais sonham com clareza
Numa profunda e impressionante noite.

Choro contínuo da natureza,
Silêncio da escuridão, gemido dos ventos,
Suspiros da brisa noturna,
Lágrimas de orvalho nos olhos da manhã.

Vejo nas ribeiras da desgraça
A multidão dos aflitos,
O cortejo dos famintos
Afugentados pelos uivos do destino,
Sem poder pronunciar palavras de despedida.

Escuto: só os soluços
Mandam seu eco aos meus ouvidos
Por detrás das fortalezas e sobre os campos.
Então, quem pode cantar comigo?

No futuro levarei minha lira,
Chorarei a desgraça do universo
E declamarei minha compaixão pelo seu infortúnio

Aos ouvidos do cruel tempo.


Nazik Al-Malaika, poetisa iraquiana (1922-2007).




https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 22 de agosto de 2019





Meditação do Duque de Gândia sobre a morte de Isabel de Portugal

Nunca Mais


A tua face será pura limpa e viva,
Nem teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O Deus que sem esperança te pedi.


Sophia de Mello Breyner Andresen




Foto: Fonte www.behance.net

quarta-feira, 21 de agosto de 2019




Casa Destelhada



A casa é um templo humilde, em cujo tecto
há goteiras que choram, noite e dia;
o seu recinto todo está repleto
do verde musgo, que a humanidade cria.

Oculta um monge de sereno aspecto
na solidão do templo, a luz sombria.
Vota-lhe o monge singular afeto,
que lhe aviventa a fonte da poesia.

Nunca lhe entre os humbrais alma profana!
Lugar tão venerando dessa forma,
ofendê-lo-á, por certo, a vista humana!

Pois se procede, nesse ambiente sério,
ao milagre da dor, que se transforma,
no cadinho do amor, em refrigério...




Bento Prado Júnior
Filósofo, escritor, tradutor e poeta brasileiro (1937-2007).







https://www.pinterest.pt/cinafraga/