Gosta Sempre de Mim
Gosta sempre de mim. Imagino o frio que aí estará, a nossa
casa de que me hei-de lembrar sempre, apesar de nunca mais voltarmos para lá, o
porteiro, a rua, os móveis, a cozinha, a cama com o cobertor ao meio, as
gravuras, e vejo como fui feliz aí contigo, como tenho sido sempre feliz
contigo, como gostaria de voltar, de voltar depressa para poder ver-te,
tocar-te, falar-te, meter a minha chave na fechadura do teu corpo, a língua na
tua boca, apertar-te o peito com as mãos, morder-te o pescoço, voar, lembro-me
de pormenores absurdos, do sinal do peito do teu pé, do teu dente de ouro, do
canal da tua nuca, e gosto absurdamente de todos: minha senhora, eu amo-a. Se
eu não a conhecesse persegui-la-ia pelas ruas com propostas sórdidas e
veementes. Recordo-me do primeiro dia em que a vi, do seu perfil de Boticelli,
recordo-me do ano seguinte na praia, do seu cabelo preso atrás e da sua risca
ao meio, do seu aspecto de retrato de Ingres, recordo-me do seu cabelo cortado
e do seu ar de midinette, e amo perdidamente todas as suas encarnações, sem
poder escolher entre elas. Amo a sua gravidez, os seus gestos, os seus sorrisos
e as suas fúrias. Amo as suas zangas e a solenidade calada e digníssima dos
seus amuos. Amo as suas recriminações e os seus beijos. E amo o seu filho, o
filho de Vossa Excelência, meu amor.
António Lobo Antunes, in 'Cartas da Guerra (14 Jan 1971)'
Fonte do poema: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/
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