sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018




Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé - o meu - sobre o teu pé.
Logo o roçar urgente do joelho
e o ventre mais à frente na maré.

É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
mas o beijo é carícia, de tão leve.

O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente,
ímpeto que não ache um abandono.

Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
somos a maré alta de quem ama

Por fim o sono calmo, que não é
senão ternura, intimidade, enleio:
o meu pé descansando no teu pé,
a tua mão dormindo no meu seio.

In “Cem Poemas Portugueses no Feminino”
Selecção e Org. de José Fanha e José Jorge Letria
Editora Terramar

Rosa Lobato de Faria
1932 – 2010


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018




Um Campo Batido pela Brisa
A tua nudez inquieta-me.

Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.

Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
ilumindo, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.

Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.

Fernando Assis Pacheco, in “A Musa Irregular”


Fonte: http://www.citador.pt/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018




Por Todos os Caminhos do Mundo
A minha poesia é assim como uma vida que vagueia
pelo mundo,

por todos os caminhos do mundo,
desencontrados como os ponteiros de um relógio velho,
que ora tem um mar de espuma, calmo, como o luar
num jardim nocturno,

ora um deserto que o simum veio modificar,
ora a miragem de se estar perto do oásis,
ora os pés cansados, sem forças para além.

Que ninguém me peça esse andar certo de quem sabe
o rumo e a hora de o atingir,
a tranquilidade de quem tem na mão o profetizado
de que a tempestade não lhe abalará o palácio,
a doçura de quem nada tem a regatear,
o clamor dos que nasceram com o sangue a crepitar.

Na minha vida nem sempre a bússola se atrai ao mesmo
norte.
Que ninguém me peça nada. 
Nada.
Deixai-me com o meu dia que nem sempre é dia,
com a minha noite que nem sempre é noite
como a alma quer.

Não sei caminhos de cor.

Fernando Namora, in 'Mar de Sargaços'



Fonte: http://www.citador.pt/


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 30 de janeiro de 2018




A Hora do Cansaço

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho eterno fica esse gosto acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

Carlos Drummond de Andrade




Fonte: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018




I

Esse perfume teu, que assim me inunda
os poros, se te aperto, se te abraço,
deixa em meu sonho o venturoso traço
do rosal, que ao meu toque se fecunda.

Outra coisa não sou senão profunda
semente, pólen sobre o teu regaço,
puro estame de amor em que te enlaço
e enxerto em minha carne vagabunda.

Cheiras, amor, igual a esses jardins
mouriscos, de fragrâncias singulares,
cheiras, amor, como a alga dos meus mares

revolvida na areia entre jasmins...
E à nardo, a murta, a estio nos pomares,
e à alva espuma nos mares, dos delfins.

Rafael Duyos
(Espanha 1906)



Fonte: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.pt/

Fonte: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018





Deitado a dormir entre os afagos da noite
Vi o meu amor debruçar-se sobre o meu leito triste,
Pálida como a mais escura folha do lírio ou corola
De pele macia e escura, o pescoço nu para ser mordido,

Transparente demais para corar, tão quente para ser branca,
Apenas de uma cor perfeita sem branco nem vermelho.
E os lábios abriram-se lhe-amorosamente e disseram -
Nem sei bem o quê, excepto uma palavra - Deleite.

E a face dela era toda mel na minha boca,
E o corpo dela todo pasto a meus olhos;
Os braços longos e lentos, as mãos quentes de fogo,

As ancas frementes, o cabelo a cheirar a Sul,
Os pés leves luzentes, as coxas esplêndidas e dóceis
E as pálpebras fulgentes com o desejo da minha alma.



Algernon Charles Swinburne
Reino Unido 1837-1909
Trad. José Bento
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

Painting by Serge Marshennikov.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018





Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.

José Saramago



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/