sexta-feira, 20 de julho de 2018




Ao Meu Maior Amigo


Quando eu morrer, eu sei, tu escreverás
Triste soneto à morte prematura;
Dirás que a vida cansa em amargura
E, pálido e frio, tu me cantarás.

Nas quadras, reflectido se lerá
De como, vã e breve, a vida expira
E como em terra funda, dura e fria,
A vida, má ou boa, acabará.

A seguir, nos tercetos, tu dirás
Que a morte é mistério, tudo fugaz,
Verdadeira, talvez, a vida além.

Por fim porás a data, assinarás.
E, relido o soneto, ficarás
Contente por tê-lo escrito bem.

Alexandre Search (Heterónimo de Fernando Pessoa)

 in "Poesia"




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 6 de julho de 2018




Ascensão


Beijava-te como se sobe uma escadaria:
pedra a pedra, do luminoso para o obscuro,
do mais visível para o mais recôndito
- até que os lábios fossem
não o ardor da sede, nem sequer a magia
da subida,
mas o tremor que é pétala do êxtase,
o lento desprender do sol do corpo
com o feliz quebranto dos meus dedos.



João Rui de Sousa, in 'Obstinação do Corpo'




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 2 de julho de 2018




Os cabelos

Embora o vento passe
Já não se agitam leves. O seu sangue,
Gelando, já não tinge a sua face.
Os olhos param sob a fonte aflita.
Já nada nela vive nem se agita,
Os seus pés já não podem formar passos,
Lentamente as entranhas endurecem
E até os gestos gelam nos seus braços.
Mas os
olhos de pedra não esquecem.
Subindo do seu corpo arrefecido,
Lágrimas lentas rolam pela face,
Lentas rolam, embora o tempo passe.

Destruição


Sophia de Mello Breyner, poetisa e escritora portuguesa (1919-2004).




Foto: ZsaZsa Bellagio

sexta-feira, 29 de junho de 2018





Junto ao mar

Junto ao mar, nesta baía suave de azul cobalto,
deixo-me envolver nos confins do pensamento,
 o recorte do céu, a expressão mais nua do chão
 e contemplo a narrativa das areias desta praia,
 a voz antiga que desfez a pedra dos montes
 no tumulto das grandes impiedosas chuvas.
 O meu arrebatamento é a história que leio
 nos veios engendrados pelo refluxo da maré,
 as algas deixadas junto ao limite das águas
 a própria índole maiúscula dos grãos de areia
 que jazem ao sabor da vastidão dos abismos
 traçados nos penhasco descidos da montanha.
 Ela ensina-me a sedução pela espuma rigorosa
 das vagas vindas de longe, trazidas no vento,
 as correntes telúricas das montanhas do mar
 e mostra-me o decurso inteiro e obstinado
 que vejo nas conchas despojadas de moluscos,
 nas algas que sucumbiram à força do tempo.
 Aqui me atenho e entendo este abraço fraternal
 das águas ajuntado os restos terminais da terra
 antes do grande dilúvio da paz do sol poente
 e ergo a minha voz e canto os espaços libertos
 na voz multifacetada das águas do grande mar,
 o azul pálido da vastidão pluricolor dos céus.


Vieira Calado





Foto: Katherine Alana LaPrell

terça-feira, 26 de junho de 2018




Em Todos os Jardins

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.


Sophia de Mello Breyner Andresen




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 12 de junho de 2018





Escuridão Formosa 

À noite toquei-te e senti-te
sem que minha mão fugisse para lá de minha mão,
sem que meu corpo fugisse, aos meus ouvidos:
de um modo quase humano
senti-te.

A pulsar,
não sei se como sangue ou como nuvem
errante,
em minha casa, na ponta dos pés, escuridão que sobe,
escuridão que desce, cintilante, correste.

Correste por minha casa de madeira,
e abriste as janelas,
e senti pulsar a noite toda,
filha dos abismos, silenciosa,
guerreira tão terrível e tão bela,
que tudo quando existe,
sem tua chama, não existiria para mim.

Gonzalo Rojas

Trad. de José Bento

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 8 de junho de 2018





Poema de  Amor Sobre Um Tema de E Whitman



Entrarei silencioso no quarto de dormir e me deitarei entre noivo e noiva,
esses corpos caídos do céu esperando nus em sobressalto,
braços pousados sobre os olhos na escuridão,
afundarei minha cara em seus ombros e seios, respirarei sua pele
e acariciarei e beijarei a nuca e a boca e mostrarei seu traseiro,
pernas erguidas e dobradas para receber, caralho atormentado na escuridão, atacando
levantado do buraco até a cabeça pulsante
corpos entrelaçados nus e trêmulos, coxas quentes e nádegas enfiadas uma na outra,
e os olhos, olhos cintilando encantadores, abrindo-se em olhares e abandono,
e os gemidos do movimento, vozes, mãos no ar, mãos entre as coxas,
mãos na umidade de macios quadris, palpitante contração de ventres
até que o branco venha jorrar no turbilhão dos lençóis
e a noiva grite pedindo perdão e o noivo se cubra de lágrimas de paixão e compaixão
e eu me erga da cama saciado de últimos gestos íntimos e beijos de adeus —
tudo isso antes que a mente desperte, atrás das cortinas e portas fechadas da casa escurecida
cujos habitantes perambulam insatisfeitos pela noite,
fantasmas desnudos buscando-se no silêncio.


Allen Ginsberg




Foto: https://pt.pinterest.com/cinafraga/