quarta-feira, 14 de junho de 2017





Ora dorme, carmim, a pétala, ora a pálida

Nem tremula o cipreste em paço do palácio;
Nem brilham as estrias na pia de pórfiro.
Desperta o pirilampo; acordas tu em mim.
Ora inclina-se o alvo pavão como espectro,
E bruxuleia como espectro sobre mim.
Ora a Terra, tal Dânae, estende-se às estrelas,
E abres teu coração inteiro para mim.
Ora desloca-se o silente meteoro,
Deixa um rastro de luz – teu pensamento em mim.
Ora projeta o lírio todo seu encanto,
Vai deslizando até o regaço da lagoa:
Projete-se assim minha querida e deslize
Até este meu regaço e ora se perca em mim.


Alfred Tennyson


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 13 de junho de 2017





Corpo

que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa

abre a janela debruça-te
deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio
o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo

Al Berto, in 'A Noite Progride Puxada à Sirga'



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 12 de junho de 2017





A Eugenio Montale

É festa no poente e eu sigo
em direção oposta à multidão
que apressada e alegre deixa o estádio.
Não olho ninguém e a todos olho.
Recolho um sorriso de vez em quando.
Mais raramente um amável aceno.

E não recordo mais quem é que eu sou.
Neste momento morrer não me agrada.
Morrer parece-me demasiado injusto.

Mesmo se não me lembro mais quem sou.

Sandro Penna



Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti.
Fonte: http://revistamododeusar.blogspot.pt
Imagem: Pesquisa Google

sábado, 10 de junho de 2017




Descalça vai para a fonte
Leonor, pela verdura;
vai formosa e não segura.
Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai formosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
cabelos de ouro o trançado,
fita de cor de encarnado…
tão linda que o mundo espanta!
chove nela graça tanta
que dá graça à formosura;
vai formosa, e não segura.


Luís de Camões


sexta-feira, 9 de junho de 2017




Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.
Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera,
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.
Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.
Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido…
(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)
Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
com a minha sede.


José Gomes Ferreira



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 8 de junho de 2017




Eu torno-me cada vez mais dócil,
e tu sempre misterioso e novo,
mas teu amor, meu severo amigo,
é uma prova de ferro e fogo.

Proíbes-me de cantar, sorrir,
e há muito tempo de rezar,
desde que não me aparte de ti,
todo o resto me é igual!

Assim, alheia à terra e ao céu,
já não canto apenas vivo.
Minha alma livre arrancaste
do inferno e do paraiso.

Anna Akhmátova

(Russia 1889-1966)


Fonte: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 7 de junho de 2017




Nunca mais

A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser.
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência.
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.


(Sophia de Mello Breyner)


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