quinta-feira, 1 de junho de 2017




Tempestade... 


O desgrenhamento
das ramagens... O choro vão
da água triste, do longo vento,
vem morrer-me no coração.
A água triste cai como um sonho,
sonho velho que se esqueceu...
( Quando virás, ó meu tristonho
Poeta, ó doce troveiro meu!...)
E minha alma, sem luz nem tenda,
passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará...



Cecília Meireles


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 30 de maio de 2017





Há no firmamento
Um frio lunar.
Um vento nevoento
Vem de ver o mar.
Quase maresia
A hora interroga,
E uma angústia fria
Indistinta voga.
Não sei o que faça,
Não sei o que penso,
O frio não passa
E o tédio é imenso.
Não tenho sentido,
Alma ou intenção...
Estou no meu olvido...
Dorme, coração...


Poesias. Fernando Pessoa.


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 29 de maio de 2017





A nudez da palavra que te despe.

Que treme, esquiva.

Com os olhos dela te quero ver,

que te não vejo.

Boca na boca, através de que boca

posso eu abrir-te e ver-te?

É meu receio que escreve e não o gosto

do sol de ver-te?

Todo o espaço dou ao espelho vivo

e do vazio te escuto.

Silêncio de vertigem, pausa, côncavo

de onde nasces, morres, brilhas, branca?

És palavra ou és corpo unido em nada?

É de mim que nasces ou do mundo solta?

Amorosa confusão, te perco e te acho,

à beira de nasceres tua boca toco

e o beijo é já perder-te.



António Ramos Rosa



Foto: Autor Paulo Almeida

domingo, 28 de maio de 2017





Gazel do Amor Imprevisto

O perfume ninguém compreendia
da escura magnólia de teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
entre os dentes um colibri de amor.

Mil pequenos cavalos persas dormem
na praça com luar de tua fronte,
enquanto eu enlaçava quatro noites,
inimiga da neve, a tua cinta.

Entre gesso e jasmins, o teu olhar
era um pálido ramo de sementes.
Procurei para dar-te, no meu peito,
as letras de marfim que dizem sempre,

sempre, sempre; jardim em que agonizo,
teu corpo fugitivo para sempre,
teu sangue arterial em minha boca,
tua boca já sem luz para esta morte.

Federico García Lorca,

 in 'Divã do Tamarit'


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 27 de maio de 2017





Saudade


Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono


Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'


Fonte do poema: http://www.citador.pt/
Foto:https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 26 de maio de 2017





Mãos

Estas carícias que trocamos
de vez em quando
mesmo antes de adormecer,
enquanto lá fora resmoneia o vento
e cá dentro tudo repousa do que é,
talvez digam mais do nosso amor
que todo o querer com que nos abraçamos
levados pelas rajadas do desejo:
um mesmo vento poderia erguer-se
em planícies mais suaves,
enquanto estas mãos,
já cautas e endurecidas,
apenas sabem passear
onde existe amor.

Um poema de Àlex Susanna

em Bosques e Cidades, 
tradução colectiva revista e apresentada por Rosa Alice Branco (Mateus, Outubro de 1995), Lisboa: Quetzal Editores, 1996, p. 20.



Foto : https://www.pinterest.pt/cinafraga/


quinta-feira, 25 de maio de 2017




A  PURA  FACE

Como encontrar-te depois de ter perdido
Uma por uma as tardes que encontrei
O ser de todo o ser de quem nem sei
Se podes ser ao menos pressentido?

Não te busquei no reino prometido
Da terra nem na paixão com que eu a amei
E porque não és tempo não te dei
Meu desejo pelas horas consumido

Apenas imagino que me espera
No infinito silêncio a pura face
Pralém de vida morte ou Primavera
E que a verei de frente e sem disfarce


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In Livro sexto, 1962

A Estrela



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