segunda-feira, 22 de maio de 2017



Abraça-me

Quero ouvir o vento que vem da tua pele,
e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos.
Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não
ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida
na palidez de todos os caminhos,
e que ambos mordemos para provar o sabor que tem
a carne incandescente das estrelas.
Abraça-me.
Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar
o sentido dos sentidos, o sentido da vida.
Procura-me com os teus antigos braços de criança,
para desamarrar em mim a eternidade,
essa soma formidável de todos os momentos livres
que a um e a outro pertenceram.
Abraça-me.
Quero morrer de ti em mim, espantado de amor.
Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos,
para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo,
o mais intenso amor do universo,
e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me.
Uma vez só.
Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.


Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'


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domingo, 21 de maio de 2017




Deixa-me errar alguma vez,
porque também sou isso: incerta e dura,
e ansiosa de não te perder
agora que entrevejo um horizonte.
Deixa-me errar e me compreende
porque se faço mal é por querer-te
desta maneira tola, e tonta,
eternamente recomeçando a cada dia
como num descobrimento
dos teus territórios de carne e sonho,
dos teus desvãos de música ou vôo,
teus sótãos e porões
e dessa escadaria de tua alma.
Deixa-me errar mas não me soltes
para que eu não me perca
deste tênue fio de alegria
dos sustos do amor que se repetem
enquanto houver entre nós essa magia.



Lia Luft


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sábado, 20 de maio de 2017





Inventar a pele

Então era outra vez. A mão na maçaneta
que faz girar o tempo. Éramos invisíveis
no meio da gente. Tudo era secreto, cúmplice
de nós subindo devagar. Saborear a elevação
do corpo, o ruído da madeira, a porta à espera
e o depois da porta. O outono vem depressa.
Guardar o verão, restos de sol no cimo
do escadote. Foi feliz o vestido estampado.
Havia um vento leve, a tua pele tocava a minha,
o mar passava pelos pés e ia. Sentir o teu corpo
como não ter vestido. Desço as camisolas,
a tua mão interior a inventar a pele.
Ela está ao sol com um colar que desce até ao peito.
Direita como se não doesse o tempo. Ela estará

depois de nós, e envelheceremos nas contas do colar.


Rosa Alice Branco 


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sexta-feira, 19 de maio de 2017




não me deixes morrer longe do mar
das vagas de palavras que me sussurras
quando fechas os olhos espraiando os lábios
e as tuas mãos são algas apetecidas

não me deixes morrer longe do mar
das asas aladas de pássaros vivos
que ecoam as noites em amor escritas
salgadas por temperos escondidos

não me deixes morrer longe do mar
das marés tão certas de incerteza
como a vida preceder o tempo
ou o horizonte ser infinito com rosto

não me deixes morrer longe… de ti


Margarida Vieira


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quinta-feira, 18 de maio de 2017




Amei-te com as palavras
com o verde ramo das palavras
e a pomba assustada do coração.

Amei-te com os olhos
o espelho doido dos olhos
e a sede inextinguível da boca.

Amei-te com a pele
as pernas e os pés
e todos os gritos que trago
por debaixo da roupa.

Amei-te com as mãos
As mesmas com que te digo adeus.


Rosa Lobato de  Faria




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quarta-feira, 17 de maio de 2017




MUTILAÇÕES

Escreve agora a música
que os muros trauteiam
como eu dilapidei o meu tesouro.

Desenha agora a árvore
que rebentou por dentro.
Mostra agora o coração
com uma flecha no centro.

Vivi de brilho
e cuspi ouro pela boca.
Se ninguém me quis prender
foi porque não dei caça
não dei luta
nem falei em razão de força maior
nem sequer do futuro que me escuta.

Este livro custa a abrir
e aquela porta a fechar.
Desata agora a chorar
mesmo sem querer
mesmo sem sentir.
Chora por tudo
o que não está para vir.


 Regina Guimarães
Pag 194


In “Cem Poemas Portugueses no Feminino”

Selecção e Org. de José Fanha e José Jorge Letria



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terça-feira, 16 de maio de 2017




QUEM ÉS TU
Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?
.
A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.
.
A história da noite é o gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,

E o teu andar é a beleza das estradas.

Sophia de Mello Breyner Andressen
In Obra Poética - Caminho,2010


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