quinta-feira, 23 de novembro de 2017




Fala Também Tu

Fala também tu,
fala em último lugar,
diz a tua sentença.

Fala 
Mas não separes o Não do Sim.
Dá à tua sentença igualmente o sentido:
dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanta exista à tua volta repartida entre
a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite.

Olha em redor:
como tudo revive à tua volta! —
Pela morte! Revive!
Fala verdade quem diz sombra.

Mas agora reduz o lugar onde te encontras:
Para onde agora, oh despido de sombra, para onde?

Sobe. Tacteia no ar.
Tornas-te cada vez mais delgado, irreconhecível, subtil!
Mais subtil: um fio,
por onde a estrela quer descer:
para em baixo nadar, em baixo,
onde pode ver-se a cintilar: na ondulação
das palavras errantes.


Paul Celan, in "De Limiar em Limiar"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 22 de novembro de 2017





Preciosa e o ar

Sua lua de pergaminho
Preciosa tocando vem
por um anfíbio sendeiro
de cristais e de louros leves.
O silêncio sem estrelas,
fugindo do sonsonete,
cai onde o mar bate e canta
sua noite cheia de peixes.
Nos altos picos da serra
carabineiros dormecem
vigiando as brancas torres
onde vivem os ingleses.
E a ciganagem da água
levanta co’ algum prazer,
carrosséis de caracóis
e ramos de pinho verde.
*
Sua lua de pergaminho
Preciosa tocando vem.
Ao vê-la se põe erguido
o vento que não dormece.
São Cristóvão desnudado,
cheio de línguas celestes,
olha a menina tocando
uma doce gaita ausente.
Moça, deixa que levante
teu vestido para ver-te.
Abre em meus dedos arcaicos
a rosa azul de teu ventre.
Preciosa atira o pandeiro
e corre sem se deter.
O vento-machão persegue
com espada incandescente.
Franze seu rumor o mar.
Olivas empalidecem.
Cantam as flautas de sombra
e o liso gongo da neve.
Preciosa, corre, Preciosa,
que te agarra o vento verde!
Preciosa, corre, Preciosa!
Olha por onde ele vem!
Sátiro de estrelas baixas
com suas línguas reluzentes.
*
Preciosa, cheia de medo,
entra na casa existente,
mais acima dos pinheiros,
consulado dos ingleses.
Assustados pelos gritos
três carabineiros vêm,
suas negras capas cingidas
e gorros em suas frentes.
O inglês dá à cigana
um copo de um morno leite,
e uma taça de genebra
que Preciosa, então, não bebe.
E enquanto conta, chorando,
a aventura àquela gente,
nas telhas de ardósia o vento,
furioso, mete-lhe os dentes.

Jacques Prévert,
tradução de Adriano Scandolara



Via: https://escamandro.wordpress.com/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 21 de novembro de 2017




Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...


Alphonsus de Guimaraens



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 20 de novembro de 2017




Amor

Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca.
Longe respira a vida. Aqui o sonho.
Tudo é infância de águas e colinas
Na manhã dos teus olhos.
E vôos de mãos dadas.
E cantos, cantos de infinito amor,
Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.

Envolve-se de nuvem nosso abraço.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem. Fadas e duendes
agitam instrumentos na folhagem.

Vibrátil, fina, imperceptível, fluída
orquestra ao longe. Ao fundo dos sentidos.
Dedos de flores ondeiam sobre a pele
de Céus indefinidos.

Cantam mistérios bocas fascinadas.
Abrem corolas sob a luz que as toca.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca.


Natércia Freire, 
in 'Antologia Poética'




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domingo, 19 de novembro de 2017




Vai invernar...


Eu hoje amanheci alegre,
querendo cantar...
O vento já chegou nas casuarinas,
e o sapo saiu de debaixo da laje
para um buraco no meio do pátio
onde vai se encher uma lagoa.
- Eh aguão!...
- Olá, José, arreia meu Cabiúna,
liso do casco à testa,
preto do rabo à crina,
que eu vou sair pelo cerrado afora,
a galopar, com a chuva me correndo atrás...
Ela já vem, branquinha, cheirando a água nova,
e a serra está clarinha, neblinando...
A chuva vem rolando, vem chiando,
e o vento assoviando
Galopa, Cabiúna, que a água vem vindo,
e as sementinhas do meloso seco estão dançando...


João Guimarães Rosa

  
 (1908-1967)




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sábado, 18 de novembro de 2017




Não o Sonho


Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.

Manuel António Pina, in "Atropelamento e Fuga"




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quarta-feira, 15 de novembro de 2017




Ama-me por amor do amor somente.
Não digas: “Amo-a pelo seu olhar,
O seu sorriso, o modo de falar
Honesto e brando. Amo-a porque se sente

Minh’alma em comunhão constantemente
Com a sua”. Porque pode mudar
Isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
Do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
De tuas mãos enxuga, pois se em mim
Secar, por teu conforto, esta vontade

De chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me por amor do amor, e assim
Me hás de querer por toda a eternidade.

Elizabeth Barrett Browning




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