sábado, 29 de dezembro de 2018






Iniciação

Quem quer que sejas: deixa tua alcova,
da qual já sabes tudo que desejas;
teu lar na tarde, longe, se renova,
quem quer que sejas.

Com teus olhos exaustos, que ainda a custo
entre os gastos umbrais logram passar,
ergues inteira a sombra dum arbusto
posto ante o céu - esguio, singular.

E tens já pronto o mundo: estranho assim
como palavra que amadurecesse
no silêncio, e que teu olhar esquece
quando lhe captas o sentido, enfim...


Rainer Maria Rilke, poeta austríaco (1875-1926)



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quarta-feira, 19 de dezembro de 2018







Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta.
Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa,.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski – seu criador.
Fotografei a nuvem de calça e o poeta.Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.


Manoel de Barros, poeta brasileiro (1916- 2014).




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sábado, 15 de dezembro de 2018







Serenata 

Venho ao teu encontro a procurar
bondade, um céu de camponeses,
altas árvores onde o sol e a chuva
adormecem na mesma folha.
Não posso amar-te mais,
luz madura, espaço aberto.
Não posso dar-te mais do que te dou:
sangue, insónias, telegramas, dedos.
Aqui estou, fronte pura, rodeado
de sombra, de soluços, de perguntas.
Aceita esta ternura surda,
este jasmim aprisionado.
Nos meus lábios, melhor: no fogo,
talvez no pão, talvez na água,
para lá dos suplícios e do medo,
tu continuas: matinalmente.


Eugénio de Andrade

in "Até Amanhã", 1956



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sábado, 24 de novembro de 2018






Ah! Toda a Alma num cárcere anda presa,
soluçando nas trevas, entre as grades
do calabouço olhando imensidades,
mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
quando a alma entre grilhões as liberdades
sonha e sonhando, as imortalidades
rasga no etéreo Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
nas prisões colossais e abandonadas,
da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!


Cruz e Sousa, poeta brasileiro (1861- 1898).





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sexta-feira, 23 de novembro de 2018





DO AZUL que ainda busca seu rosto, sou o primeiro a beber.  
Vejo e bebo de teu rastro: 
Deslizas pelos meus dedos, pérolas, e cresces! 
Cresces como todos os esquecidos 
Deslizas: o granizo negro da melancolia  
Cai num lenço, todo branco pelo aceno de despedida. 

Paul Celan, poeta ucraniano-francês (1920-1970).

( tradução: Claudia Cavalcanti )





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terça-feira, 20 de novembro de 2018








20 de Novembro - Dia da Consciência Negra


Irmãos 

Na noite coroada de diamantes e rubis.
Passeais, estátuas esculturais na praia de luar.
Sois de negra pele, vestida desse brilho irreal.
Ah! Como são esguias vossas sombras
Desenhadas nas areias claras.

Sois jovens ainda!
Há que amadurar,
As palmas brancas das vossas mãos ternura.
São a força futura do respeito, q
Que muitos vos devem tributar.
Ah! Estátuas modeladas na ternura
Frutos de noites de estrelas enfeitadas.

Segui por esses caminhos vossos,
Colhei lágrimas das acácias que perfumam,
O choro inocente do negrinho.
Rasgai as sabanas,
O grito soltai!
Proclamai vossos direitos,
Vivei em sintonia com a sabana
Aí a vida é lei, a luta desigual,
Mesmo assim não vos vergueis
À severa e desigual lei.

Negros de pele, brancos de alma,
Toda a desigualdade é sujeição.
Correm rios de sangue vermelho tão igual
Ao meu doído doído coração
Que a ti irmão de pele escura.
Te pensa e de ti se sente Irmão.



Augusta Maria Gonçalves. 20.11.2018.




Art By Samere Tansley

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sábado, 3 de novembro de 2018





Uma Pequenina  Luz


Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha



Jorge de Sena, poeta e crítico literário português (1919-1978).




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segunda-feira, 29 de outubro de 2018






Instante

O espanto abriu meu pensamento
Com idioma vindo do delírio,
Dos receios indefesos, dos louvores sem raízes,
No perdão oferecido sem razão.
O espanto abriu meu pensamento
Na noite carregada de lamentos
Em linguagem universal
Fluindo do eco perdido
Com passos de presságio amanhecendo.
Corpos florindo na pele da terra
Acendendo vida nas rosas e nos vermes,
Aumentando a potência do limo,
Preparando a primavera nos campos,
Ventres irrigando secas raízes,
Cogumelos róseos crescendo
Na umidade das faces.
Coagulação de prantos na semente
Das constelações adivinhadas.
E no faminto inconsciente, o tempo
Sorvendo com fúria o seu sustento
No insondável silêncio de mim mesma.



Adalgisa Nery, poeta, jornalista e política brasileira (1905-1980).




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quinta-feira, 25 de outubro de 2018






Sou essa Flor

Tua vida é um grande rio, vai caudalosamente,
a sua beira, invisível, eu broto docemente.
Sou essa flor perdida entre juncos e achiras
que piedoso alimentas, mas acaso nem olhas.

Quando cresces me levas e morro em teu seio,
quando secas morro pouco a pouco no lodo;
Mas de novo volto a brotar docemente
quando nos dias belos vais caudalosamente.

Sou essa flor perdida que brota nas tuas margens
humilde e silenciosa todas as primaveras.



Alfonsina Storni, poetisa argentina (1892-1938).



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segunda-feira, 22 de outubro de 2018





Uma Prece


Muitas vezes o vento do ocidente cantava para mim.
Haviam vozes no córrego e riachos,
E árvores lamentosas diziam para mim, meu Deus, de ti.
E eu não ouvi. Oh! abra pensamentos em meus ouvidos.

Os juncos sussurando baixo quando eu pensava:
"Seja forte, ó amigo, seja forte, adie os medos vãos,
Não da alma com dúvidas, Deus não pode mentir".
E eu não ouvi. Oh! abra pensamentos em meus ouvidos.

Haviam muitas estrelas para guiar meus pés,
Muitas evzes, a lua delicada, ouvindo meus suspiros,
Alugando nuvens e mostrando de uma rua de prata.
E eu não vi. Oh! Desvenda-me os olhos.

Anjos me acenavam incessantemente
e andavam comigo, sob os céus sombrios.
O amado Cristo estendia Suas mãos para mim;
E eu não vi. Oh! Desvenda-me os olhos.


Alfred Douglas, poeta britânico (1870- 1945).



Fonte do poema: http://clubedepoetashomenagens.blogspot.com/2013/09/alfred-douglas.html

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quinta-feira, 18 de outubro de 2018





Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor
seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível
dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura
dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer
que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas
nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras
dos véus da alma...
É um sossego, uma unção,
um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta,
muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade
o olhar estático da aurora.



Vinícius de Moraes,
Diplomata, poeta e compositor brasileiro (1913-1980).


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quarta-feira, 17 de outubro de 2018





As  Palavras

Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo
As palavras identificam-se com o asfalto negro
O tropel das nuvens
A espessura azul das árvores acesas pelos faróis
O rumor verde
As palavras saem de um ferida exangue
De teclas de metal fresco
De caminhos e sombras
Da vertigem de ser só um deserto
De armas de gume branco
Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos
E há palavras como giestas vivas
Matrizes primordiais matéria habitada
Forma indizível num rectângulo de argila
Quem alimenta este silêncio senão o gosto de
Colocar pedra sobre pedra até á oblíqua exactidão?
As palavras vêm de lugares fragmentários
De uma disseminação de iniciais
De magmas respirados
De odor de gérmen de olhos
As palavras podem formar uma escrita nativa
De corpos claros
Que são as palavras?Imprecisas armas
Em praias concêntricas
Torres de sílex e de cal
Aves insólitas
As palavras são travessias brancas faces
Giratórias
Elas permitem a ascensão das formas
Elevam-se estrato após estrato
Ou voam em diagonal
Até à cúpula diáfana
As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado
Que enfrentam as palavras?O espelho
Da noite a sua impossível
Elipse
Saem da noite despedaçadas feridas
E são signos do acaso pedras de sol e sal
A da sua língua nascem estrelas trituradas


António Ramos Rosa, poeta português (1924- 2013)




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domingo, 14 de outubro de 2018






Amo-te (mais linda namorada)
Como a ninguém na terra inteira e eu
Amo-te bem mais que tudo que há no céu
Há luz solar e canto à sua chegada
Embora o inverno espalhe em toda parte
Tanto silêncio e tanta escuridão
Que ninguém mais percebe outra estação
Grassar na vida (minha vida à parte) –
E se o que se diz mundo por favor
Ou sorte ouvisse o canto (ou visse que
A luz do meio-dia se avizinha
Quão mais feliz o coração caminha
Aperto de mais perto de você
Creria (namorada) só no amor



E. E. Cummings, poeta estado-unidense (1894- 1962).



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sexta-feira, 12 de outubro de 2018






O cavalo azul

a Dora Ferreira da Silva



Um tropel de silêncio e eternidade
desdobra o ar em acordes levíssimos,
feitos de orvalho e bruma.
As crinas vão desatando o infinito,
as estrelas, a solidão mais aguda.
Eis o instante do cavalo azul.
Eis a sagração do céu em nós.
De seu dorso nascem os desastres.
Procelas tatuam o seu plexo.
Nos seus flancos levitam violinos de água,
teclas de pólen, sinfonias de esquecimento.
Jamais a morte poderia nos assaltar
com maior doçura, com mais bela música.
Jamais o sofrimento teve olhos tão dóceis,
cílios de mel e vinho.
Nunca o instante teve essa luz raríssima,
desenhada pelas puras formas
de um relâmpago cego,
diamante vivo a deslumbrar a noite.
A rutilância dos segundos galga nossa pele,
a terra olorosa do corpo.
Em chamejante espiral de nuvens,
o cavalo azul nos enlaça em seu fulgor,
na ternura de uma violência incontida,
dança de galáxias e sóis delirantes,
vórtice febril, iluminado.
Ao toque do seu pêlo de súbitos incêndios,
queimamos nossa alma no eterno,
aderimos nossa pele ao infindável.
Festa múltipla, embriaguês da febre,
somos a celebração dessa sonâmbula magia,
pulsar sagrado desnudando-nos para as tempestades,
para a decantação dos mares selvagens.
Eis o instante da morte aguda.
Eis o êxtase do tempo soberano.
O cavalo azul nos visita
com sua aparição de lanças desnudas,
de lâminas agudas, mil raios
a trespassarem nossas feridas.
Quando suas patas arpejam a terra,
as sementes fecundam os sonhos,
despontam do pó ramos e milagres,
frutos abençoam a encantação do amor:
o cavalo marinho e os oceanos,
o cavalo turquesa e os mares,
o cavalo de âmbar e os corais ardentes.


Reluz na noite um fulgor de adaga desnuda,
fulgente aparição a cortar o sonho dos mortos,
o sono das estrelas marinhas: cavalo azul
a relampejar pelos caminhos o tempo das cicatrizes.
Sua crina flamejante, seu ígneo peito, seduzem o luar,
ampliam pelo infinito a cintilação das marés.
Espectro de labirintos vazios,
ele galga a espuma das praias,
a agonia dos condenados à morte.
Ele dardeja a dança dos barcos,
o bordado das ondas,
a solidão dos marinheiros em febre.
Os náufragos, os miseráveis, os afogados,
clamam pela salvação desse sopro de chuvas,
desse maremoto de coices ardentes.
Serenamente soa pela brisa seu pulsar de sândalo,
o seu galope de prismas, delicado aroma
do vinho a incendiar os crepúsculos.
Ele adeja sobre o desespero, salvando-nos
da carne, do medo, do tempo.
Ele nos resgata do pó humano, soerguendo-nos
à sagração das searas fecundas.
Quando seu resfolegar nos arrebata,
nos resgata de nossos pulsos,
ressuscitamos no clarão dos rubis,
na magnitude da aurora boreal.
Desde o nascimento estamos consagrados
a essa epifania de silêncio e mel:
o cavalo andaluz e o eclipse lunar,
o cavalo cigano e os cometas partidos,
o cavalo de absinto e o mercúrio dos astros.


Galopo no dorso das marés,
meu corpo costurado nos ciclones,
meu torso cravado em tua pele, em teu pelo lunar.
Galopante aridez, eu só sei pulsar no teu plexo,
na fecundidade dos abismos.
Corpos em sôfrega transpiração,
corpos em uníssono, rios a confluírem
num delta de vertigens, foz de enchentes
desvairadas, de correntezas alucinadas.
Possuído pela lâmina dessa fúria,
transmuto-me na energia a cegar
as lanças, os ocasos, os labirintos.
Sou o ser pleno a exaltar-te,
és o que sou, o que fui e serei.
Consagro-me à graça dessa comunhão,
pela qual sou o universo e o nada.
Nessa terra me deito, navego,
nessa pedra me enterro, respiro,
perco-me nesse instinto, nesse espasmo,
para ser o fogo dos corais,
azul febril de infinita iluminura.
Cavalo marinho, dardejante quartzo,
em tuas crinas de ágata, de prata,
queimo a palavra da última estrela,
rasgo o fulgor do teu transe,
da tua clarividência,
pois a morte se fez para os eleitos,
para os profetas, os que sabem da finitude
pelo íntimo do fruto, pelo cerne da chuva.
Eis o pulsar da fúria e das catástrofes:
o cavalo opalino e as estrelas,
o cavalo candente e a poeira dos astros,
o cavalo de vidro e os veleiros incendiados.


Soou a hora derradeira e primeira.
Eis o momento dos vendavais,
do estertor dos cataclismas.
Eis o que em nós germinou
antes do nascer das sementes:
nossa morte, cavalo azul a cortar o céu,
a lançar nosso destino aos astros,
onde a infância nos abraça novamente;
nossa morte, corcel cravejado de safiras,
noite mais densa que as rochas,
onde o azul é harpa de cristais partidos,
batel de marinhas esmaecidas.
A sombra extrema desenha nosso rosto
no vazio de outro rosto.
A sombra extrema, fruto túmido,
pleno, explode nosso íntimo,
dissolvendo-nos na fulguração do eterno.
Eis o momento do cavalo azul.
Eis a hora da ressurreição das marés.
Um tropel de sinfonias e plumas
dardeja nossa carne, rasga nosso sêmen.
O cavalo azul aflora dos abismos,
emerge dos desastres, germina das montanhas.
Em sua sede bebemos nosso avesso.
Em sua fome sorvemos nosso mistério.
Eis a travessia impossível,
onde todo homem não caminha,
porque não tem pernas, nem pés.
Eis a travessia amputada,
pasto de enigmas, partitura dos sonhos,
onde somos cegos em nosso destino cego.
Do fecundo nada, do absoluto silêncio,
nasce essa música cristalina, puríssima:
o cavalo celeste e as enchentes,
o cavalo etrusco e os anéis de saturno,
o cavalo de água e os arquipélagos selvagens.



El caballo azul



A Dora Ferreira da Silva

Un tropel de silencio y eternidad
desdobla el aire en acordes levísimos,
hechos de rocío y bruma.
Las crines van desatando el infinito,
las estrellas, la soledad más aguda.
He ahí el instante del caballo azul.
He ahí la consagración del cielo en nosotros.
De su dorso nacen los desastres.
Tempestades tatúan su plexo.
En sus flancos levitan violines de agua,
teclas de polen, sinfonías de olvido.
Jamás la muerte podría asaltarnos
con mayor dulzura, con más bella música.
Jamás el sufrimiento tuvo ojos tan dóciles,
pestañas de miel y vino.
Nunca el instante tuvo esa luz rarísima,
dibujada por las puras formas
de un relámpago ciego,
diamante vivo que deslumbra la noche.
La rutilancia de los segundos alcanza nuestra piel,
la tierra olorosa del cuerpo.
En llameante espiral de nubes,
el caballo azul nos enlaza en su fulgor,
en la ternura de una violencia incontenida,
danza de galaxias y soles delirantes,
vórtice febril, iluminado.
Al toque de su pelo de súbitos incendios,
quemamos nuestra alma en lo eterno,
adherimos nuestra piel a lo infinito.
Fiesta múltiple, embriaguez de la fiebre,
somos la celebración de esta sonámbula magia,
pulsar sagrado desnudándonos para las tempestades,
para la decantación de los mares salvajes.
He ahí el instante de la muerte aguda.
He ahí el éxtasis del tiempo soberano.
El caballo azul nos visita
con su aparición de lanzas desnudas,
de láminas agudas, mil rayos
que traspasan nuestras heridas.
Cuando sus patas arpegian la tierra,
las semillas fecundan los sueños,
despuntan del polvo ramos y milagros,
frutos bendicen el encanto del amor:
el caballo marino y los océanos,
el caballo turquesa y los mares,
el caballo de ámbar y los corales ardientes.



Reluce en la noche un fulgor de daga desnuda,
fulgente aparición que corta el sueño de los muertos,
el sueño de las estrellas marinas: caballo azul
que refucila por los caminos el tiempo de las cicatrices.
Sus crines flameantes, su ígneo pecho seducen el claro de luna,
amplían por el infinito la cintilación de las mareas.
Espectro de laberintos vacíos,
él galga la espuma de las playas,
la agonía de los condenados a muerte.
Él lanza dardos a la danza de los barcos,
al bordado de las olas,
a la soledad de los marineros febriles.
Los náufragos, los miserables, los ahogados
claman por la salvación de este soplo de las lluvias,
de este maremoto de coces ardientes.
Serenamente suena por la brisa su pulsar de sándalo,
su galope de prismas, delicado aroma
del vino que incendia los crepúsculos.
Él revolotea sobre la desesperación, salvándonos
de la carne, del miedo, del tiempo.
Él nos rescata del polvo humano, irguiéndonos
a la consagración de las cosechas fecundas.
Cuando su respiración nos arrebata,
nos rescata de nuestros pulsos,
resucitamos en el relámpago de los rubíes,
en la magnitud de la aurora boreal.
Desde el nacimiento estamos consagrados
a la epifanía de silencio y miel:
el caballo andaluz y el eclipse de luna,
el caballo gitano y los cometas partidos,
el caballo de ajenjo y el mercurio de los astros.


Galopo en el dorso de las mareas,
mi cuerpo cosido en los ciclones,
mi torso clavado en tu piel, en tu pelo de luna.
Galopante aridez, yo sólo sé pulsar en tu plexo,
en la fecundidad de los abismos.
Cuerpos en atropellada transpiración,
cuerpos al unísono, ríos que confluyen
en un delta de vértigos, lecho de inundaciones
alocadas, de corrientes alucinadas.
Poseído por la lámina de esta furia,
me transformo en la energía que ciega
las lanzas, los ocasos, los laberintos.
Soy el ser pleno que te exalta,
eres lo que soy, lo que fui y seré.
Me consagro a la gracia de esta comunión,
por la que soy el universo y la nada.
En esta tierra me acuesto, navego,
en esta piedra me entierro, respiro,
me pierdo en este instinto, en este espasmo,
para ser el fuego de los corales,
azul febril de infinita iluminura.
Caballo marino que Lanza dardos de cuarzo,
en tus crines de ágata, de plata,
quemo la palabra de la última estrella,
rasgo el fulgor de tu transe,
de tu clarividencia,
pues se hizo la muerte para los elegidos,
para los profetas, los que saben de la finitud
por lo íntimo del fruto, por el amago de la lluvia.
He ahí el pulsar de la furia y de las catástrofes:
el caballo opalino y las estrellas,
el caballo candente y el polvo de los astros,
el caballo de vidrio y los veleros incendiados.


Sonó la hora última y primera.
He ahí el momento de los vendavales,
del estertor de los cataclismos.
He ahí lo que germinó en nosotros
antes del nacimiento de las semillas:
nuestra muerte, caballo azul que corta el cielo,
que lanza nuestro destino a los astros,
donde la infancia nos abraza nuevamente;
nuestra muerte, corcel engarzado de zafiros,
noche más densa que las rocas,
donde el azul es arpa de cristales partidos,
barco de muelles brumosos.
La sombra extrema dibuja nuestro rostro
en el vacío de otro rostro.
La sombra extrema, fruto hinchado,
pleno, explota en nuestro interior,
disolviéndonos en el fulgor de lo eterno.
He ahí el momento del caballo azul.
He ahí la hora de la resurrección de las mareas.
Un tropel de sinfonías y plumas
lanza dardos a nuestra carne, rasga nuestro semen.
El caballo azul aflora de los abismos,
emerge de los desastres, germina de las montañas.
En su sed bebemos nuestro reverso.
En su hambre sorbemos nuestro misterio.
He ahí la travesía imposible,
donde todo hombre no camina,
porque no tiene piernas ni pies.
He ahí la travesía amputada,
pasto de enigmas, partitura de los sueños,
donde somos ciegos en nuestro destino ciego.
De la fecunda nada, del absoluto silencio,
nace esta música cristalina, purísima:
el caballo celeste y las inundaciones,
el caballo etrusco y los anillos de Saturno,
el caballo de agua y los archipiélagos salvajes.


Alejandro Bonafim (Brasil)

Traducción: Silvia Adoue



Fonte:  http://navegantesdelacruzdelsur.blogspot.com/2010/04/alejandro-bonafim.html



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quinta-feira, 4 de outubro de 2018





Amor



O teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.



José Luís Peixoto, in "A Casa, A Escuridão"





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sábado, 22 de setembro de 2018






O Último Poema

Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.


Manuel Bandeira




Photographer Alexandra Bochkareva

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quinta-feira, 20 de setembro de 2018






Soneto de Amor

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma...Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio, escritor português (1901-1969).




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quarta-feira, 5 de setembro de 2018





Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava…
Era, no copo, além do gim, o gelo;
além do gelo, a roda de limão…
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.
Era no gira-discos, o Martírio
de São Sebastião, de Debussy….
Era, na jarra, de repente, um lirio!
Era a certeza de ficar sem ti.
Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança…


David Mourão-Ferreira, in Infinito Pessoal


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