quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

 

 

 


 

Mira, no pido mucho,

solamente tu mano, tenerla

como un sapito que duerme así contento.

 

 

Julio Cortazar

 


terça-feira, 26 de janeiro de 2021

 
 
 
 

Um anjo vem todas as noites:

senta-se ao pé de mim, e passa

sobre meu coração a asa mansa,

como se fosse meu melhor amigo.

Esse fantasma que chega e me abraça

(asas cobrindo a ferida do flanco)

é todo o amor que resta

entre ti e mim, e está comigo.

 

 

Lya Luft


terça-feira, 19 de janeiro de 2021

 
 
 

 
 
 
 
 
 
Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até na íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.
Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.
Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.
Mas nós sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.
 
 
Fiama Hasse Pais Brandão, in Cenas Vivas
 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

 

 

 

 


 

Os Anos de Ti para Mim

 

 

O teu cabelo volta a ondular-se quando choro. Com o azul dos

teus olhos

pões a mesa do nosso amor: uma cama entre o verão e o

outono.

Bebemos o que alguém preparou, que não era eu, nem tu, nem

um terceiro:

sorvemos um último vazio.

 

Miramo-nos nos espelhos do mar profundo e passamos mais

depressa um ao outro os alimentos:

a noite é a noite, começa com a manhã,

é ela que me deita a teu lado.

 

 

Os Anos de Ti para Mim

O teu cabelo volta a ondular-se quando choro. Com o azul dos

teus olhos

pões a mesa do nosso amor: uma cama entre o verão e o

outono.

Bebemos o que alguém preparou, que não era eu, nem tu, nem

um terceiro:

sorvemos um último vazio.

 

Miramo-nos nos espelhos do mar profundo e passamos mais

depressa um ao outro os alimentos:

a noite é a noite, começa com a manhã,

é ela que me deita a teu lado.

 

Paul Celan, poeta ucraniano-francês (1920-1970).,

 

 in "Papoila e Memória"

 

Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

sábado, 31 de outubro de 2020

 

 
 
 
 

Por detrás da noite há um muro.

Minhas mãos o tocam. Soa-me na voz um fragor de pedra.

A solidão me impele a um lamento surdo.

Choro tua memória. Teu corpo a mim entregue.

Entre seda e mel. Lume. Comunhão de labaredas.

Meu rosto não mente: partiste.

Meus olhos te buscam para além deste frio estreme,

desta névoa que envolve meus dias ávida

de lágrimas e agonia.

Sobram-me os gestos, as carícias que não demos,

e o vinho entontecido que ficou em meus lábios a arder.

Não, não me encontres em sonhos

na calidez de teu leito.

Ficou fechado o tempo dos lírios acesos,

das açucenas dos vales,

dos campos irradiando verde,

das corças nuas correndo

em direcção à luz impoluta das manhãs.

Está amargo o coração. Está amargo,

ateando a morte em sua frágil roseira dissecada.

Que sabes tu desta fome inconsútil

envergando o traje amarrotado da indiferença?

Do rubro vinho que em minhas veias corre célere

despertando o fogo mais oculto e mais ardente?

Tanto, tanto esforço dispendido

para que foras nuvem branca, colina aberta,

júbilo constante em meu peito resguardada…

Para que em mim brilhasses destruí

os caminhos da minha liberdade,

acolhi no pensamento a delicadeza do orvalho

e o cheiro da terra molhada que rescende

após a chuva de um longo dia de Verão.

Inventei aves canoras para ti,

pinheirais a ondear ao vento,

manhãs de neblina intensa,

rubros vinhedos,

eloendros em flor,

loiros trigais espraiados na lonjura

e á mobilidade de certos rios impus

a permanência do meu desejo puro.

Bebi a água que te cercava os lábios

com a sofreguidão de um adolescente cego,

atravessei os luminosos poentes que em tua nudez

se perfumavam com as cores de uma aurora radiante

e no surdo sussurrar das fontes soube ouvir

o som da chama que supera a labareda

e a voz do fogo que persiste para além

da combustão das coisas.

Para tocar teu corpo

minhas mãos se encheram de giesta e de urze,

de seiva e resina, de trevos e de espigas.

Cantei-te como quem nega a morte:

fragrante da vida que tua pele esplende,

do aroma que tua boca emana,

da tepidez velada que teu ventre inebria.

Quem és, ó doce respiração de meu sangue?

Ambígua forma que não alcanço,

amarga evanescência,

doloroso fluir de incandescente corpo

que minha carne fazes estremecer

em sua deslumbrada intensidade

e meus sentidos inocentemente florir

e minhas pálpebras irisar,

com tuas silenciosas ondas,

tuas frementes espumas,

teus relâmpagos de frescura,

tuas incontáveis claridades?

Tanta paixão de pranto agarrada aos meus ombros.

Sacudir de todas as raízes,

Assalto de todas as vagas!

Roda, hoje, tiste, interminável, a minha alma.

Pensando, enterrando lâmpadas nesta profunda solidão.

Mas quem és tu, quem és?

 

Gonçalo Salvado Poeta - "O Muro"