sábado, 31 de outubro de 2020

 

 
 
 
 

Por detrás da noite há um muro.

Minhas mãos o tocam. Soa-me na voz um fragor de pedra.

A solidão me impele a um lamento surdo.

Choro tua memória. Teu corpo a mim entregue.

Entre seda e mel. Lume. Comunhão de labaredas.

Meu rosto não mente: partiste.

Meus olhos te buscam para além deste frio estreme,

desta névoa que envolve meus dias ávida

de lágrimas e agonia.

Sobram-me os gestos, as carícias que não demos,

e o vinho entontecido que ficou em meus lábios a arder.

Não, não me encontres em sonhos

na calidez de teu leito.

Ficou fechado o tempo dos lírios acesos,

das açucenas dos vales,

dos campos irradiando verde,

das corças nuas correndo

em direcção à luz impoluta das manhãs.

Está amargo o coração. Está amargo,

ateando a morte em sua frágil roseira dissecada.

Que sabes tu desta fome inconsútil

envergando o traje amarrotado da indiferença?

Do rubro vinho que em minhas veias corre célere

despertando o fogo mais oculto e mais ardente?

Tanto, tanto esforço dispendido

para que foras nuvem branca, colina aberta,

júbilo constante em meu peito resguardada…

Para que em mim brilhasses destruí

os caminhos da minha liberdade,

acolhi no pensamento a delicadeza do orvalho

e o cheiro da terra molhada que rescende

após a chuva de um longo dia de Verão.

Inventei aves canoras para ti,

pinheirais a ondear ao vento,

manhãs de neblina intensa,

rubros vinhedos,

eloendros em flor,

loiros trigais espraiados na lonjura

e á mobilidade de certos rios impus

a permanência do meu desejo puro.

Bebi a água que te cercava os lábios

com a sofreguidão de um adolescente cego,

atravessei os luminosos poentes que em tua nudez

se perfumavam com as cores de uma aurora radiante

e no surdo sussurrar das fontes soube ouvir

o som da chama que supera a labareda

e a voz do fogo que persiste para além

da combustão das coisas.

Para tocar teu corpo

minhas mãos se encheram de giesta e de urze,

de seiva e resina, de trevos e de espigas.

Cantei-te como quem nega a morte:

fragrante da vida que tua pele esplende,

do aroma que tua boca emana,

da tepidez velada que teu ventre inebria.

Quem és, ó doce respiração de meu sangue?

Ambígua forma que não alcanço,

amarga evanescência,

doloroso fluir de incandescente corpo

que minha carne fazes estremecer

em sua deslumbrada intensidade

e meus sentidos inocentemente florir

e minhas pálpebras irisar,

com tuas silenciosas ondas,

tuas frementes espumas,

teus relâmpagos de frescura,

tuas incontáveis claridades?

Tanta paixão de pranto agarrada aos meus ombros.

Sacudir de todas as raízes,

Assalto de todas as vagas!

Roda, hoje, tiste, interminável, a minha alma.

Pensando, enterrando lâmpadas nesta profunda solidão.

Mas quem és tu, quem és?

 

Gonçalo Salvado Poeta - "O Muro"


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

 

 


 

 

Sou, sozinha, uma camélia imensa

Ardendo e indo e vindo, gozo a gozo.

 

Acho que estou subindo,

Acho que me posso levantar

Contas de metal ardente voam, e eu, amor, eu

 

Sou uma virgem pura

De acetileno

Cuidada por rosas,

Por beijos, por querubins,

Por qualquer dessas coisas róseas.

 

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Sylvia Plath (1932- 1963)

domingo, 25 de outubro de 2020

 

 

 

 

Inflama-me, poente:

Faz-me perfume e chama;

Que o meu coração seja igual a ti, poente!

Descobre em mim o eterno, o que arde, o que ama,

E o vento do esquecimento arraste o que é doente!

 

Juan Ramón Jiménez

 

25 de Outubro de 1956 - O poeta espanhol Juan Ramón Jiménez recebe o Prêmio Nobel de Literatura.

 

 


quarta-feira, 29 de julho de 2020



Uma ideia bonita:

Uma, roubava livros.
O outro, roubava o céu

Markus Zusak

A Menina que Roubava Livros








Arthur Braginsky Painter

sexta-feira, 17 de julho de 2020






III – Salmos da Noite


Ó minha amante, eu quero a volúpia vermelha
Nos teus braços febris receber sobre a boca;
Minh'alma, que ao calor dos teus lábios se engelha
E morre, há de cantar perdidamente louca.

O peito, que a uma furna escura se assemelha,
De mágicos florões o teu olhar me touca;
Ao teu lábio que morde e tem mel como a abelha,
Dei toda a vida... e eterna ela seria pouca.

Ao teu olhar, oceano ora em calma ora em fúria,
Canta a minha paixão um salmo fundo e terno,
Como o ganido ao luar de uma cadela espúria...

Salmo de tédio e dor, hausteante, negro e eterno,
E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria,
E no entanto eu te adoro, ó céu do meu inferno!



Alphonsus de Guimaraens, poeta brasileiro (1870-1921).