sábado, 15 de dezembro de 2018







Serenata 

Venho ao teu encontro a procurar
bondade, um céu de camponeses,
altas árvores onde o sol e a chuva
adormecem na mesma folha.
Não posso amar-te mais,
luz madura, espaço aberto.
Não posso dar-te mais do que te dou:
sangue, insónias, telegramas, dedos.
Aqui estou, fronte pura, rodeado
de sombra, de soluços, de perguntas.
Aceita esta ternura surda,
este jasmim aprisionado.
Nos meus lábios, melhor: no fogo,
talvez no pão, talvez na água,
para lá dos suplícios e do medo,
tu continuas: matinalmente.


Eugénio de Andrade

in "Até Amanhã", 1956



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sábado, 24 de novembro de 2018






Ah! Toda a Alma num cárcere anda presa,
soluçando nas trevas, entre as grades
do calabouço olhando imensidades,
mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
quando a alma entre grilhões as liberdades
sonha e sonhando, as imortalidades
rasga no etéreo Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
nas prisões colossais e abandonadas,
da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!


Cruz e Sousa, poeta brasileiro (1861- 1898).





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sexta-feira, 23 de novembro de 2018





DO AZUL que ainda busca seu rosto, sou o primeiro a beber.  
Vejo e bebo de teu rastro: 
Deslizas pelos meus dedos, pérolas, e cresces! 
Cresces como todos os esquecidos 
Deslizas: o granizo negro da melancolia  
Cai num lenço, todo branco pelo aceno de despedida. 

Paul Celan, poeta ucraniano-francês (1920-1970).

( tradução: Claudia Cavalcanti )





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terça-feira, 20 de novembro de 2018








20 de Novembro - Dia da Consciência Negra


Irmãos 

Na noite coroada de diamantes e rubis.
Passeais, estátuas esculturais na praia de luar.
Sois de negra pele, vestida desse brilho irreal.
Ah! Como são esguias vossas sombras
Desenhadas nas areias claras.

Sois jovens ainda!
Há que amadurar,
As palmas brancas das vossas mãos ternura.
São a força futura do respeito, q
Que muitos vos devem tributar.
Ah! Estátuas modeladas na ternura
Frutos de noites de estrelas enfeitadas.

Segui por esses caminhos vossos,
Colhei lágrimas das acácias que perfumam,
O choro inocente do negrinho.
Rasgai as sabanas,
O grito soltai!
Proclamai vossos direitos,
Vivei em sintonia com a sabana
Aí a vida é lei, a luta desigual,
Mesmo assim não vos vergueis
À severa e desigual lei.

Negros de pele, brancos de alma,
Toda a desigualdade é sujeição.
Correm rios de sangue vermelho tão igual
Ao meu doído doído coração
Que a ti irmão de pele escura.
Te pensa e de ti se sente Irmão.



Augusta Maria Gonçalves. 20.11.2018.




Art By Samere Tansley

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sábado, 3 de novembro de 2018





Uma Pequenina  Luz


Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha



Jorge de Sena, poeta e crítico literário português (1919-1978).




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segunda-feira, 29 de outubro de 2018






Instante

O espanto abriu meu pensamento
Com idioma vindo do delírio,
Dos receios indefesos, dos louvores sem raízes,
No perdão oferecido sem razão.
O espanto abriu meu pensamento
Na noite carregada de lamentos
Em linguagem universal
Fluindo do eco perdido
Com passos de presságio amanhecendo.
Corpos florindo na pele da terra
Acendendo vida nas rosas e nos vermes,
Aumentando a potência do limo,
Preparando a primavera nos campos,
Ventres irrigando secas raízes,
Cogumelos róseos crescendo
Na umidade das faces.
Coagulação de prantos na semente
Das constelações adivinhadas.
E no faminto inconsciente, o tempo
Sorvendo com fúria o seu sustento
No insondável silêncio de mim mesma.



Adalgisa Nery, poeta, jornalista e política brasileira (1905-1980).




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quinta-feira, 25 de outubro de 2018






Sou essa Flor

Tua vida é um grande rio, vai caudalosamente,
a sua beira, invisível, eu broto docemente.
Sou essa flor perdida entre juncos e achiras
que piedoso alimentas, mas acaso nem olhas.

Quando cresces me levas e morro em teu seio,
quando secas morro pouco a pouco no lodo;
Mas de novo volto a brotar docemente
quando nos dias belos vais caudalosamente.

Sou essa flor perdida que brota nas tuas margens
humilde e silenciosa todas as primaveras.



Alfonsina Storni, poetisa argentina (1892-1938).



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