terça-feira, 12 de junho de 2018





Escuridão Formosa 

À noite toquei-te e senti-te
sem que minha mão fugisse para lá de minha mão,
sem que meu corpo fugisse, aos meus ouvidos:
de um modo quase humano
senti-te.

A pulsar,
não sei se como sangue ou como nuvem
errante,
em minha casa, na ponta dos pés, escuridão que sobe,
escuridão que desce, cintilante, correste.

Correste por minha casa de madeira,
e abriste as janelas,
e senti pulsar a noite toda,
filha dos abismos, silenciosa,
guerreira tão terrível e tão bela,
que tudo quando existe,
sem tua chama, não existiria para mim.

Gonzalo Rojas

Trad. de José Bento

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 8 de junho de 2018





Poema de  Amor Sobre Um Tema de E Whitman



Entrarei silencioso no quarto de dormir e me deitarei entre noivo e noiva,
esses corpos caídos do céu esperando nus em sobressalto,
braços pousados sobre os olhos na escuridão,
afundarei minha cara em seus ombros e seios, respirarei sua pele
e acariciarei e beijarei a nuca e a boca e mostrarei seu traseiro,
pernas erguidas e dobradas para receber, caralho atormentado na escuridão, atacando
levantado do buraco até a cabeça pulsante
corpos entrelaçados nus e trêmulos, coxas quentes e nádegas enfiadas uma na outra,
e os olhos, olhos cintilando encantadores, abrindo-se em olhares e abandono,
e os gemidos do movimento, vozes, mãos no ar, mãos entre as coxas,
mãos na umidade de macios quadris, palpitante contração de ventres
até que o branco venha jorrar no turbilhão dos lençóis
e a noiva grite pedindo perdão e o noivo se cubra de lágrimas de paixão e compaixão
e eu me erga da cama saciado de últimos gestos íntimos e beijos de adeus —
tudo isso antes que a mente desperte, atrás das cortinas e portas fechadas da casa escurecida
cujos habitantes perambulam insatisfeitos pela noite,
fantasmas desnudos buscando-se no silêncio.


Allen Ginsberg




Foto: https://pt.pinterest.com/cinafraga/

segunda-feira, 28 de maio de 2018




Trevas

Eu tive um sonho que não era em todo um sonho
O sol esplêndido extinguira-se, e as estrelas
Vagueavam escuras pelo espaço eterno,
Sem raios nem roteiro, e a enregelada terra
Girava cega e negrejante no ar sem lua;
Veio e foi-se a manhã – Veio e não trouxe o dia;
E os homens esqueceram as paixões, no horror
Dessa desolação; e os corações esfriaram
Numa prece egoísta que implorava luz:
E eles viviam ao redor do fogo; e os tronos,
Os palácios dos reis coroados, as cabanas,
As moradas, enfim, do gênero que fosse,
Em chamas davam luz; As cidades consumiam-se
E os homens juntavam-se junto às casas ígneas
Para ainda uma vez olhar o rosto um do outro;
Felizes enquanto residiam bem à vista
Dos vulcões e de sua tocha montanhosa;
Expectativa apavorada era a do mundo;
Queimavam-se as florestas – mas de hora em hora
Tombavam, desfaziam-se – e, estralando, os troncos
Findavam num estrondo – e tudo era negror.
À luz desesperante a fronte dos humanos
Tinha um aspecto não terreno, se espasmódicos
Neles batiam os clarões; alguns, por terra,
Escondiam chorando os olhos; apoiavam
Outros o queixo às mãos fechadas, e sorriam;
Muitos corriam para cá e para lá,
Alimentando a pira, e a vista levantavam
Com doida inquietação para o trevoso céu,
A mortalha de um mundo extinto; e então de novo
Com maldições olhavam para a poeira, e uivavam,
Rangendo os dentes; e aves bravas davam gritos
E cheias de terror voejavam junto ao solo,
Batendo asas inúteis; as mais rudes feras
Chagavam mansas e a tremer; rojavam víboras,
E entrelaçavam-se por entre a multidão,
Silvando, mas sem presas – e eram devoradas.
E fartava-se a Guerra que cessara um tempo,
E qualquer refeição comprava-se com sangue;
E cada um sentava-se isolado e torvo,
Empanturrando-se no escuro; o amor findara;
A terra era uma idéia só – e era a de morte
Imediata e inglória; e se cevava o mal
Da fome em todas as entranhas; e morriam
Os homens, insepultos sua carne e ossos;
Os magros pelos magros eram devorados,
Os cães salteavam seus donos, exceto um,
Que se mantinha fiel a um corpo, e conservava
Em guarda as bestas e aves e famintos homens,
Até a fome os levar, ou os que caíam mortos
Atraírem seus dentes; ele não comia,
Mas com um gemido comovente e longo, e um grito
Rápido e desolado, e relambendo a mão
Que já não o agradava em paga – ele morreu.
Finou-se a multidão de fome, aos poucos; dois,
Dois inimigos que vieram a encontrar-se
Junto às brasas agonizantes de um altar
Onde se haviam empilhado coisas santas
Para um uso profano; eles a resolveram
E trêmulos rasparam, com as mãos esqueléticas,
As débeis cinzas, e com um débil assoprar
E para viver um nada, ergueram uma chama
Que não passava de arremedo; então alçaram
Os olhos quando ela se fez mais viva, e espiaram
O rosto um do outro – ao ver gritaram e morreram
– Morreram de sua própria e mútua hediondez,
– Sem um reconhecer o outro em cuja fronte
Grafara o nome “Diabo”. O mundo se esvaziara,
O populoso e forte era uma informe massa,
Sem estações nem árvore, erva, homem, vida,
Massa informe de morte – um caos de argila dura.
Pararam lagos, rios, oceanos: nada
Mexia em suas profundezas silenciosas;
Sem marujos, no mar as naus apodreciam,
Caindo os mastros aos pedaços; e, ao caírem,
Dormiam nos abismos sem fazer mareta,
mortas as ondas, e as marés na sepultura,
Que já findara sua lua senhoril.
Os ventos feneceram no ar inerte, e as nuvens
Tiveram fim; a escuridão não precisava
De seu auxílio – as trevas eram o Universo.

Lord Byron

(Tradução de Castro Alves)




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 26 de maio de 2018




Queima o sangue um fogo de desejo,
De desejo a alma é ferida,
Dá-me os teus lábios: o teu beijo
É o meu vinho e minha mirra.
Reclina para mim a cabeça
Ternamente, faz que eu durma
Sereno até que sopre um dia alegre
E se dissipe a névoa noturna.

Alexander Pushkin



Casey Baugh art

sexta-feira, 25 de maio de 2018



Alice Ruiz disse:  Fim de tarde depois do trovão o silêncio é maior




Art By Steve Hanks

quarta-feira, 23 de maio de 2018





Dantes eu queria

Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.
Hoje não, fujo dessa idéia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo - humanas,
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer
Mudando sempre,
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.
Quero
Afogar em bulício, em luz, em vozes,
- Tumultuárias [cousas] usuais -
o sentimento da desolação
Que me enche e me avassala.
Folgaria
De encher num dia, [...] num trago,
A medida dos vícios, inda mesmo
Que fosse condenado eternamente -
Loucura! - ao tal inferno,
A um inferno real.


Fernando Pessoa



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 22 de maio de 2018






Abraça-me.


Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. 
Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. 
Abraça-me. 
Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. 
Abraça-me. 
Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. 
Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. 
Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.


Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/