sexta-feira, 17 de março de 2023

 

 

 


 

 

Balada da Neve

 

 

Batem leve, levemente,

Como quem chama por mim.

Será chuva? Será gente?

Gente não é, certamente

E a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:

Mas há pouco, há poucochinho,

Nem uma agulha bulia

Na quieta melancolia

Dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,

Com tão estranha leveza,

Que mal se ouve, mal se sente?

Não é chuva, nem é gente,

Nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía

Do azul cinzento do céu,

branca e leve, branca e fria...

Há quanto tempo a não via!

E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.

Pôs tudo da cor do linho.

Passa gente e, quando passa,

Os passos imprime e traça

Na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais

Da pobre gente que avança,

E noto, por entre os mais,

Os traços miniaturais

Duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...

A neve deixa inda vê-los,

Primeiro, bem definidos,

Depois, em sulcos compridos,

Porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador

Sofra tormentos, enfim!

Mas as crianças, Senhor,

Porque lhes dais tanta dor?!...

Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,

Uma funda turbação

Entra em mim, fica em mim presa.

Cai neve na Natureza

E cai no meu coração.

 

 

Augusto César Ferreira Gil  (1873-1929)

 

 

Augusto César Ferreira Gil foi um advogado e poeta português. Passou a maior parte da sua vida na mais alta cidade de Portugal, Guarda, a "sagrada Beira", de cuja paisagem encontramos reflexos em muitos dos seus poemas... 

 

 

 

 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

 

 

 




 

 

Recordar David Mourão-Ferreira, escritor e poeta português (1927-1996).

 

Alvorada

 

E de súbito um corpo!

Alvorada sombria,

Alvorada nefasta envolta nuns cabelos.

Eram negros e vivos. Quem sofria,

Só de vê-los?

 

Eram negros; e vivos como chamas.

Brilhavam, azulados sob a chuva.

Brilhavam, azulados, como escamas

De sereia sombria, sob a chuva...

 

Veio cedo de mais a trovoada:

O vento me lembrou

De quem eu sou.

- Alvorada suspensa! Contemplada

por alguém que chegou a uma sacada

e à beira da varanda vacilou.

 

 

David Mourão-Ferreira