Por detrás da noite há um muro.
Minhas mãos o tocam. Soa-me na voz um fragor de pedra.
A solidão me impele a um lamento surdo.
Choro tua memória. Teu corpo a mim entregue.
Entre seda e mel. Lume. Comunhão de labaredas.
Meu rosto não mente: partiste.
Meus olhos te buscam para além deste frio estreme,
desta névoa que envolve meus dias ávida
de lágrimas e agonia.
Sobram-me os gestos, as carícias que não demos,
e o vinho entontecido que ficou em meus lábios a arder.
Não, não me encontres em sonhos
na calidez de teu leito.
Ficou fechado o tempo dos lírios acesos,
das açucenas dos vales,
dos campos irradiando verde,
das corças nuas correndo
em direcção à luz impoluta das manhãs.
Está amargo o coração. Está amargo,
ateando a morte em sua frágil roseira dissecada.
Que sabes tu desta fome inconsútil
envergando o traje amarrotado da indiferença?
Do rubro vinho que em minhas veias corre célere
despertando o fogo mais oculto e mais ardente?
Tanto, tanto esforço dispendido
para que foras nuvem branca, colina aberta,
júbilo constante em meu peito resguardada…
Para que em mim brilhasses destruí
os caminhos da minha liberdade,
acolhi no pensamento a delicadeza do orvalho
e o cheiro da terra molhada que rescende
após a chuva de um longo dia de Verão.
Inventei aves canoras para ti,
pinheirais a ondear ao vento,
manhãs de neblina intensa,
rubros vinhedos,
eloendros em flor,
loiros trigais espraiados na lonjura
e á mobilidade de certos rios impus
a permanência do meu desejo puro.
Bebi a água que te cercava os lábios
com a sofreguidão de um adolescente cego,
atravessei os luminosos poentes que em tua nudez
se perfumavam com as cores de uma aurora radiante
e no surdo sussurrar das fontes soube ouvir
o som da chama que supera a labareda
e a voz do fogo que persiste para além
da combustão das coisas.
Para tocar teu corpo
minhas mãos se encheram de giesta e de urze,
de seiva e resina, de trevos e de espigas.
Cantei-te como quem nega a morte:
fragrante da vida que tua pele esplende,
do aroma que tua boca emana,
da tepidez velada que teu ventre inebria.
Quem és, ó doce respiração de meu sangue?
Ambígua forma que não alcanço,
amarga evanescência,
doloroso fluir de incandescente corpo
que minha carne fazes estremecer
em sua deslumbrada intensidade
e meus sentidos inocentemente florir
e minhas pálpebras irisar,
com tuas silenciosas ondas,
tuas frementes espumas,
teus relâmpagos de frescura,
tuas incontáveis claridades?
Tanta paixão de pranto agarrada aos meus ombros.
Sacudir de todas as raízes,
Assalto de todas as vagas!
Roda, hoje, tiste, interminável, a minha alma.
Pensando, enterrando lâmpadas nesta profunda solidão.
Mas quem és tu, quem és?
Gonçalo Salvado Poeta - "O Muro"