sábado, 18 de abril de 2020





Apocalipse



As velas estão abertas como luzes.
As ondas crespas cantam porque o vento as afogou.
As estrelas estão dependuradas no céu e oscilam.
Nós as veremos descer ao mar como lágrimas.
As estrelas frias se desprenderão do céu
E ficarão boiando, as mãos brancas inertes, sobre as águas frias.
As estrelas serão arrastadas pelas correntes boiando nas
águas imensas.
Seus olhos estarão fechados docemente
E seus seios se elevarão gelados e enormes
Sobre o escuro do tempo.




Augusto Frederico Schmidt, poeta brasileiro 1906/1965



Foto: Marion Cotillard















Scott Rohlfs - Artist


sexta-feira, 17 de abril de 2020






Amanhã meu amor,

Amanhã faço poemas com os teus dedos donde nascem flores,
amanhã escrevo-te cartas com os lábios a tremer de frio,
amanhã adormeço desperta no canto mais canto que houver da tua voz,
Amanhã meu amor,

Verei todas as folhas amarelas que nascem do chão e regressam aos ramos dos teus braços,
amanhã vou dançar no silêncio proibido que te cala,
amanhã fecho os olhos e finjo que estou acordada
para que me toques as pálpebras com a respiração ofegante de quem cega,

Amanhã meu amor,

Abro as janelas do peito onde nascem estrelas sem céu,
abro a cama e procuro-te debaixo dela,
dou-te a mão para que me encontres no mapa da pele dorida,
para que me encontres talvez no mesmo sítio de sempre onde nunca foste,

Amanhã meu amor,

Dedico-te o vento que roça as estátuas já esverdeadas da tua cidade,
faço-te promessas de palavras que não existem,
desafio-te para um duelo de um só combatente,
deixo-te sozinho comigo encostada aos teus ombros de lava,

Amanhã meu amor,

Vou cantar canções na rádio da frequência 0.00,
vou atirar-te areia com os pés no meio de lugar nenhum,
devolvo-te as minhas ideias que nunca ouviste porque não sei dizê-las com boca nem mão,

Amanhã meu amor,

Vou gostar de ti como se fosses uma manga doce,
vou ter medo das paredes intactas do teu ser,
vou gritar às raízes das árvores por não as ser,
vou girar à volta do mundo sem sequer o saber,

Amanhã meu amor,

Vou desenhar a lápis de cera como as crianças,
dar-te um desenho de que me vou esquecer,
amadurecer à tua espera, à espera de me ver em ti,

Amanhã meu amor,

Vou fazer malabarismo com o tempo,
desprender-te da liberdade, da minha liberdade,
aconchegar-te à noite sem saberes,

Só porque amanhã meu amor,

Amanhã,
Vou continuar a gostar de Ti.

Raquel Lacerda

1987 (Inédito)
Extraído do livro, Os Dias do Amor

Pag 410

quarta-feira, 15 de abril de 2020







Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.
Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.
Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido…
Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
- que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.


Pedro Tamen


Portugal (Lisboa) 1934
in Tábua das matérias
Editor: Tertulia





Fonte: cantodaalma.blogspot.com


Christian Shloe Artist 



terça-feira, 14 de abril de 2020





As Mulheres


Houve mulheres serenas,
De olhos claros, infinitas
No seu silêncio,
Como largas planícies
Onde um rio ondeia;

Houve mulheres alumiadas
De ouro, émulas do Estio
E do incêndio,
Semelhantes a searas
Luxuriantes
Que a foice não tocou
Nem o fogo devora,
Sequer o dos astros sob um céu
Os lábios como
Palavras de festa,
E as pálpebras como
Violetas.




Gabriele d'Annunzio, poeta italiano (1863-1938).