sexta-feira, 12 de abril de 2019






A Ilha dos Amores

De uma os cabelos de ouro o vento leva
Correndo, e de outra as fraldas delicadas;
Acende-se o desejo, que se ceva
Nas alvas carnes súbito mostradas;
Uma de indústria cai, e já releva,
Com mostras mais macias que indignadas,
Que sobre ela, empecendo, também caia
Quem a seguiu pela arenosa praia.

Outros, por outra parte, vão topar
Com as Deusas despidas, que se lavam:
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam.
Umas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando.

Outra, como acudindo mais depressa
A vergonha da Deusa caçadora,
Esconde o corpo n’água; outra se apressa
Por tomar os vestidos, que tem fora.
Tal dos mancebos há, que se arremessa,
Vestido assim e calçado (que, coa mora
De se despir, há medo que ainda tarde)
A matar na água o fogo que nele arde.

Qual cão de caçador, sagaz e ardido,
Usado a tomar na água a ave ferida,
Vendo no rosto o férreo cano erguido
Para a garcenha ou pata conhecida,
Antes que soe o estouro, mal sofrido
Salta n’água, e da presa não duvida,
Nadando vai e latindo: assim o mancebo
Remete à que não era irmã de Febo.

Leonardo, soldado bem disposto,
Manhoso, cavaleiro e namorado,
A quem amor não dera um só desgosto,
Mas sempre fora dele maltratado,
E tinha já por firme pressuposto
Ser com amores mal afortunado,
Porém não que perdesse a esperança
De ainda poder seu fado ter mudança,

Quis aqui sua ventura, que corria
Após Efire, exemplo de beleza,
Que mais caro que as outras dar queria
O que deu para dar-se a natureza.
Já cansado correndo lhe dizia:
“Ó formosura indigna de aspereza,
Pois desta vida te concedo a palma,
Espera um corpo de quem levas a alma.[…}

Já não fugia a bela Ninfa, tanto
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.

Ó que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.


Excertos do Canto IX d’Os Lusíadas de Luís de Camões

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 11 de abril de 2019






O lírio Branco

Nascido das lágrimas d' aurora e dos beijos do dia, 
ele se abre, nos relvados floridos do prado, 
d'entre as verdes fitas de sua planta viçosa, 
alvo como a espuma dos mares, 
como o flóculo de nuvem virgem das carícias do sol, 
como o amículo da castidade.

Graça dos vales, ele é o turíbulo 
de perfumes balançado no templo da Natureza, 
à hora santa d'Ave-Maria.




Delminda Silveira



Yuri Yarosh Artist

quarta-feira, 10 de abril de 2019






Pensei que eras meu inimigo,
A minha grande infelicidade.
Mas inimigo não és – só um mentiroso
E são vãs as tuas manobras.

Diante do carrossel
Eu joguei cara ou coroa.
Queria, com essa moeda,
Saber se te amo ou não.

Meu lenço ficou caído
No chão, no jardim Aleksándrov.
Aqueci as mãos; mas todos souberam
O que eu pensava – e que também mentia.

As mentiras devem estar voando
À minha volta como corvos.
Mas da próxima vez que te despedires
Não verás, em meus olhos, nem azul nem negro.

Ah, continua vivendo, não fiques triste.
Por mim está tudo bem.
Mas como tudo isso é inútil,
Como é tudo absurdo!

Tu vais para um lado,
Eu vou para outro.


Bella Akhmadulina, poetista russa (1937-2010).



(Texto e poema extraídos do livro Poesia Soviética, com seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho.)


Gentle Honeybee Photography

terça-feira, 9 de abril de 2019







Sed non satiata




Bizarra divindade, escura como as noites,
Em mesclado perfume de almíscar e havana,
Obra de algum obi, o Fausto da savana,
Ventre de ébano, bruxa em negras meias-noites,
Eu prefiro ao constance, ao ópio ou ao nuits,
O elixir dessa boca onde o amor se engalana;
Quando a ti meus desejos vão em caravana,
Teus olhos, a cisterna onde eu bebo aos açoites.
Por estes grandes olhos negros em fervor
Por ti, demo sem pena! A mim, menos calor;
Não sou o Estige a nove vezes te abraçar,
E aí! eu sem poder, Megera libertina,
Para quebrar teu brio e então te encurralar,
No inferno de teu leito a virar Proserpina!


Charles Baudelaire, poeta francês (1821- 1867).






domingo, 7 de abril de 2019






Agora, vejam...


Agora, vejam como a rapariga passa
Tão bem, tão satisfeita, alegre, toda risos,
Com o formoso olhar resplendente de graça,
E à boca, a tilintar, uma porção de guizos.

Nenhum medo, nenhum, a incomoda e embaraça.
E os dois seios lhe são delicados narcisos
De seiva virginal. Com modos de ricaça
Ei-la no campo em flor, sem passos indecisos.

É que vive com ela e ela sente, extremosa
A alma feita verão, dulcíssima e piedosa
Daquele a quem beijava os pés, e que hoje em dia

Anda a dizer-lhe ao ouvido as coisas mais bonitas,
Encontradas no azul das plagas infinitas,
Onde tudo floresce e canta de alegria.



Juvêncio de Araújo Figueiredo




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/