segunda-feira, 11 de março de 2019





Vida:
Sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
Cujos passos são horas
Cadenciadas
Rítmicas
Fatais.
A cada movimento do teu corpo
Dispersam asas de desejos
Que me roçam a pele
E encrespam os nervos na alucinação do «nunca mais».
Vou seguindo teus passos
Lutando e sofrendo
Cantando e chorando
E ficam abertos meus braços:
Nunca te alcanço!
Meu suplício de Tântalo.
Envelheço...
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
Na oscilação nervosa
Das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
À punhalada dilacero a folhagem
E abro clareiras
Na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
No roçar dos espinhos
Minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
Meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
Firme
Gloriosa
Tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
No lodo...
O vento da noite badala nos ramos
Sarcasmos canalhas.
Não avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
Do meu grito
Que vêm de longe e de perto
Do sul e do norte
Que me envolvem
E esmagam:
Maldita selva, maldita selva,
Antes o deserto, a sede e a morte!


Manuel da Fonseca, in "Rosa dos Ventos"




Fonte: http://www.citador.pt/


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quinta-feira, 7 de março de 2019





Mors Amor


Nesses tremendos círculos da vida
Erras, clamando, aflita e delirante.
Ao céu levantas a alma soluçante,
De preces e de súplicas ungida.

Dentro do teu clamor exulcerante,
Sem rumo e só, de dores combalida,
Vagas por esses círculos, perdida,
E giras nesse sorvedouro estuante.

Buscaste o amor; e o mundo era um deserto!
Teu coração, de lágrimas coberto,
Em vão gritou por quem o acalentasse.

O amor nos ermos corações morrera
Árvores augusta, em plena primavera,
Que um sol maldito e bárbaro queimasse!


Artur de Sales, poeta, tradutor e escritor brasileiro (1879-1952)


Maria Magdalena Oosthuizen Artist


Photo:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 3 de março de 2019





O Corpo não Espera



O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.


Jorge de Sena





Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 2 de março de 2019






Nuvens voam pelo ar como bandos de garças,
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o
Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma na treva.

Anoiteceu.
(...)



Menotti Del Picchia





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sexta-feira, 1 de março de 2019







A Posse


Que súbita suspeita - dália enorme -
Passara como a sombra nos teus cílios,
Se a manhã chega enquanto de nós foge
O tempo que já tinha destruído.
Um rosto sobre o peito o que escutava?
A canção, um contorno de mamilos
Breve, se erguida a curva nas espáduas
Era o desejo, e calma, largos rios.
Cabelos desgrenhados, fugitivos,
E vento não havia, ou quase chama
Nos rins, na pele, um cancro que consome
Este pecado casto, e já os lábios
Se fecham, quando rápida ou mais funda
Em nós cresceu a ferida dos sentidos.



Fernando Guimarães



David Hamilton Photography


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019





Não tenhas medo do amor

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.



Maria do Rosário Pedreira



                                                      Do livro O Canto do Vento nos Ciprestes





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 24 de fevereiro de 2019






Paraíso



Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.



David Mourão-Ferreira, escritor e poeta português (1927- 1996).


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/