terça-feira, 26 de fevereiro de 2019





Não tenhas medo do amor

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.



Maria do Rosário Pedreira



                                                      Do livro O Canto do Vento nos Ciprestes





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 24 de fevereiro de 2019






Paraíso



Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.



David Mourão-Ferreira, escritor e poeta português (1927- 1996).


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019






Nunca fui como todos
Nunca tive muitos amigos
Nunca fui favorita
Nunca fui o que meus pais queriam
Nunca tive alguém que amasse
Mas tive somente a mim
A minha absoluta verdade
Meu verdadeiro pensamento
O meu conforto nas horas de sofrimento
não vivo sozinha porque gosto
e sim porque aprendi a ser só...



Florbela Espanca


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019





Cheguei  tarde, e os que sabiam de mim
Notaram que o meu corpo já náo me
Pertencia. E perguntaram. Porque ardia
A tua boca nos meus lábios mais do que
A fogueira do segredo, respondi-lhes
Que o céu, afinal , era mesmo azul, e o
Verão uma estação maior que o tempo,
E o tempo nada se o teu corpo estava
Junto desse corpo que todos ja sabiam
Que não vinha comigo- e que Deus,
Deus fechava os olhos e existia. Riram
Os que te tinham conhecido noutra noite
Com outra pele vestida; os outros foram
Para muito mais longe que o seu rosto
Magoado dizer ao próprio ouvido que eu
Mentia. Mas os que ainda queriam saber
De mim pediram-me que lhes contasse
Quem eras, o teu nome. E eu mordi essa
Boca vermelha que deixara contigo para
Não ter de dizer que nem o perguntara.”



Maria do Rosário Pedreira




 Foto de Katia Chausheva

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 2 de fevereiro de 2019





Para onde vais será outono e tarde,
Veado azul que sob árvores soa,
Solitário lago na tarde.

Baixo o vôo dos pássaros soa,
Sobre teus olhos a melancolia dos arcos,
Teu leve sorriso soa.

Das tuas pálpebras Deus fez arcos.
Estrelas procuram à noite, filha de sexta-feira santa,
Na tua fronte, os arcos.


Georg Trakl, poeta austríaco 1887/1914


(tradução: Cláudia Cavalcante)





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019






Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade




Al Berto, poeta e editor português (1948-1997).



Boris Prokazov Painting

https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019






Manhã  de Inverno

Há frio e sol: que manhã linda!
Tu, meu primor, dormes ainda.
É tempo, ó bela, de acordar.
Desvenda o olhar que o torpor cerra,
Encara a aurora sobre a terra
Qual fosses novo astro polar!
À noite, neve e tempestade
Houve e, no céu, névoa, verdade?
A mancha lívida do luar
Nos nimbos era amarelada.
Tristonha estavas e sentada;
E ora… à janela vem olhar:
Ao claro azul do céu que esplende,
Tapete raro que se estende,
A neve jaz a fulgurar;
O bosque, só, sobressai, preto;
Verdeja, sob a geada, o abeto;
Sob gelo, eis a água a lucilar.
Faz-se ambarino o quarto inteiro.
Vem estalido prazenteiro
Do recém-aceso fogão.
Meditar perto dele é grato.
Mas dize: queres que, neste ato,
A poldra parda atrele, não?
A deslizar na neve, amada,
Dar-nos-emos à galopada
Do equino e sua agitação.
Iremos ver os nus e imensos
Campos, faz pouco inda tão densos,
E a praia de minha afeição.



Aleksander Púchkin   Poeta e dramaturgo  1799–1837

(1829)




Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/