quarta-feira, 9 de janeiro de 2019






Manhã  de Inverno

Há frio e sol: que manhã linda!
Tu, meu primor, dormes ainda.
É tempo, ó bela, de acordar.
Desvenda o olhar que o torpor cerra,
Encara a aurora sobre a terra
Qual fosses novo astro polar!
À noite, neve e tempestade
Houve e, no céu, névoa, verdade?
A mancha lívida do luar
Nos nimbos era amarelada.
Tristonha estavas e sentada;
E ora… à janela vem olhar:
Ao claro azul do céu que esplende,
Tapete raro que se estende,
A neve jaz a fulgurar;
O bosque, só, sobressai, preto;
Verdeja, sob a geada, o abeto;
Sob gelo, eis a água a lucilar.
Faz-se ambarino o quarto inteiro.
Vem estalido prazenteiro
Do recém-aceso fogão.
Meditar perto dele é grato.
Mas dize: queres que, neste ato,
A poldra parda atrele, não?
A deslizar na neve, amada,
Dar-nos-emos à galopada
Do equino e sua agitação.
Iremos ver os nus e imensos
Campos, faz pouco inda tão densos,
E a praia de minha afeição.



Aleksander Púchkin   Poeta e dramaturgo  1799–1837

(1829)




Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 29 de dezembro de 2018






Iniciação

Quem quer que sejas: deixa tua alcova,
da qual já sabes tudo que desejas;
teu lar na tarde, longe, se renova,
quem quer que sejas.

Com teus olhos exaustos, que ainda a custo
entre os gastos umbrais logram passar,
ergues inteira a sombra dum arbusto
posto ante o céu - esguio, singular.

E tens já pronto o mundo: estranho assim
como palavra que amadurecesse
no silêncio, e que teu olhar esquece
quando lhe captas o sentido, enfim...


Rainer Maria Rilke, poeta austríaco (1875-1926)



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018







Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta.
Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa,.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski – seu criador.
Fotografei a nuvem de calça e o poeta.Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.


Manoel de Barros, poeta brasileiro (1916- 2014).




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sábado, 15 de dezembro de 2018







Serenata 

Venho ao teu encontro a procurar
bondade, um céu de camponeses,
altas árvores onde o sol e a chuva
adormecem na mesma folha.
Não posso amar-te mais,
luz madura, espaço aberto.
Não posso dar-te mais do que te dou:
sangue, insónias, telegramas, dedos.
Aqui estou, fronte pura, rodeado
de sombra, de soluços, de perguntas.
Aceita esta ternura surda,
este jasmim aprisionado.
Nos meus lábios, melhor: no fogo,
talvez no pão, talvez na água,
para lá dos suplícios e do medo,
tu continuas: matinalmente.


Eugénio de Andrade

in "Até Amanhã", 1956



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sábado, 24 de novembro de 2018






Ah! Toda a Alma num cárcere anda presa,
soluçando nas trevas, entre as grades
do calabouço olhando imensidades,
mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
quando a alma entre grilhões as liberdades
sonha e sonhando, as imortalidades
rasga no etéreo Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
nas prisões colossais e abandonadas,
da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!


Cruz e Sousa, poeta brasileiro (1861- 1898).





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sexta-feira, 23 de novembro de 2018





DO AZUL que ainda busca seu rosto, sou o primeiro a beber.  
Vejo e bebo de teu rastro: 
Deslizas pelos meus dedos, pérolas, e cresces! 
Cresces como todos os esquecidos 
Deslizas: o granizo negro da melancolia  
Cai num lenço, todo branco pelo aceno de despedida. 

Paul Celan, poeta ucraniano-francês (1920-1970).

( tradução: Claudia Cavalcanti )





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terça-feira, 20 de novembro de 2018








20 de Novembro - Dia da Consciência Negra


Irmãos 

Na noite coroada de diamantes e rubis.
Passeais, estátuas esculturais na praia de luar.
Sois de negra pele, vestida desse brilho irreal.
Ah! Como são esguias vossas sombras
Desenhadas nas areias claras.

Sois jovens ainda!
Há que amadurar,
As palmas brancas das vossas mãos ternura.
São a força futura do respeito, q
Que muitos vos devem tributar.
Ah! Estátuas modeladas na ternura
Frutos de noites de estrelas enfeitadas.

Segui por esses caminhos vossos,
Colhei lágrimas das acácias que perfumam,
O choro inocente do negrinho.
Rasgai as sabanas,
O grito soltai!
Proclamai vossos direitos,
Vivei em sintonia com a sabana
Aí a vida é lei, a luta desigual,
Mesmo assim não vos vergueis
À severa e desigual lei.

Negros de pele, brancos de alma,
Toda a desigualdade é sujeição.
Correm rios de sangue vermelho tão igual
Ao meu doído doído coração
Que a ti irmão de pele escura.
Te pensa e de ti se sente Irmão.



Augusta Maria Gonçalves. 20.11.2018.




Art By Samere Tansley

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