quinta-feira, 26 de julho de 2018




Fuga em azul menor

O meu rosto de terra
ficará aqui mesmo
no mar ou no horizonte.
Ficará defronte
à casa onde morei.
Mas o meu rosto azul,
O meu rosto de viagem,
esse, irá pra onde irei.

Todo o mundo físico
que gorjeia lá fora
não me procure agora.
Embarquei numa nuvem
por um vão de janela
dos meus cinco sentidos.
E que adianta a alegria
dizer que estou presente
com o meu rosto de terra
se não estou em casa?

Cassiano Ricardo (1895- 1974).




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 22 de julho de 2018




" Filho "


TENS EM TI A LUZ DAS MANHÃS.

Sopros de vento.
Arvoredo açoitado
Nem poalha, nem pétala, nem grão de areia.
Chão de minh'alma
Eira de espigas loiras.
Nesgas de tempo.
Espigueiro antigo, arca, tesouro escondido.
Filho meu.
 Meu coração repartido.
Desejo amor, que tenha eu lugar nesse teu peito.
Pois nesta hora, te entrego ao Divino pai numa oração.
Tem meu filho a certeza que Tu sempre foste amor perfeito.
Mesmo nos dias de sombra.
És a flor vestida de abandono.
Nas horas que te leio os olhos distantes
Os lábios calados
E em todas as outras horas,que tu velaste.
A debilidade que me vestia o sono.
Foste o esteio amoroso da minha fragilidade.
Grata por tua benignidade. 


Eu!
Augusta Mar. 18.7.2018.




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 20 de julho de 2018




Ao Meu Maior Amigo


Quando eu morrer, eu sei, tu escreverás
Triste soneto à morte prematura;
Dirás que a vida cansa em amargura
E, pálido e frio, tu me cantarás.

Nas quadras, reflectido se lerá
De como, vã e breve, a vida expira
E como em terra funda, dura e fria,
A vida, má ou boa, acabará.

A seguir, nos tercetos, tu dirás
Que a morte é mistério, tudo fugaz,
Verdadeira, talvez, a vida além.

Por fim porás a data, assinarás.
E, relido o soneto, ficarás
Contente por tê-lo escrito bem.

Alexandre Search (Heterónimo de Fernando Pessoa)

 in "Poesia"




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 6 de julho de 2018




Ascensão


Beijava-te como se sobe uma escadaria:
pedra a pedra, do luminoso para o obscuro,
do mais visível para o mais recôndito
- até que os lábios fossem
não o ardor da sede, nem sequer a magia
da subida,
mas o tremor que é pétala do êxtase,
o lento desprender do sol do corpo
com o feliz quebranto dos meus dedos.



João Rui de Sousa, in 'Obstinação do Corpo'




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 2 de julho de 2018




Os cabelos

Embora o vento passe
Já não se agitam leves. O seu sangue,
Gelando, já não tinge a sua face.
Os olhos param sob a fonte aflita.
Já nada nela vive nem se agita,
Os seus pés já não podem formar passos,
Lentamente as entranhas endurecem
E até os gestos gelam nos seus braços.
Mas os
olhos de pedra não esquecem.
Subindo do seu corpo arrefecido,
Lágrimas lentas rolam pela face,
Lentas rolam, embora o tempo passe.

Destruição


Sophia de Mello Breyner, poetisa e escritora portuguesa (1919-2004).




Foto: ZsaZsa Bellagio

sexta-feira, 29 de junho de 2018





Junto ao mar

Junto ao mar, nesta baía suave de azul cobalto,
deixo-me envolver nos confins do pensamento,
 o recorte do céu, a expressão mais nua do chão
 e contemplo a narrativa das areias desta praia,
 a voz antiga que desfez a pedra dos montes
 no tumulto das grandes impiedosas chuvas.
 O meu arrebatamento é a história que leio
 nos veios engendrados pelo refluxo da maré,
 as algas deixadas junto ao limite das águas
 a própria índole maiúscula dos grãos de areia
 que jazem ao sabor da vastidão dos abismos
 traçados nos penhasco descidos da montanha.
 Ela ensina-me a sedução pela espuma rigorosa
 das vagas vindas de longe, trazidas no vento,
 as correntes telúricas das montanhas do mar
 e mostra-me o decurso inteiro e obstinado
 que vejo nas conchas despojadas de moluscos,
 nas algas que sucumbiram à força do tempo.
 Aqui me atenho e entendo este abraço fraternal
 das águas ajuntado os restos terminais da terra
 antes do grande dilúvio da paz do sol poente
 e ergo a minha voz e canto os espaços libertos
 na voz multifacetada das águas do grande mar,
 o azul pálido da vastidão pluricolor dos céus.


Vieira Calado





Foto: Katherine Alana LaPrell

terça-feira, 26 de junho de 2018




Em Todos os Jardins

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.


Sophia de Mello Breyner Andresen




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/