quarta-feira, 6 de setembro de 2017




Fui onde me trouxe o duro fado
A passar o melhor da minha idade,
Não tenho mais que a bruta sociedade
De algum tosco vilão que tange o gado.

Tudo o mais é deserto inabitado,
Despenhos, precipícios, soledade,
Que só pode oferecer comodidade
Para algum infeliz desesperado.

Aqui sobre uma penha esmorecido
Fico um dia talvez, e em tal segredo,
Que até nem de mim mesmo sou sentido.

E, então, estupefactos mudo, e quedo
Assi’estou de males aturdido;
Qual junto de um penedo, outro penedo.

Abade de Jazente


in Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI; Selecção, organização, introdução e notas Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 5 de setembro de 2017




Quero-te

Quero-te num lugar onde
te confundas com a claridade
pois é dessa luz que eu preciso
para iluminar meus olhos
cansados de escuridão.

Quero-te num lugar onde
te possa beijar num sufoco
como se os meus lábios quisessem
falar-te de uma só vez
toda a verdade e essa verdade
não fosse mais que um grande amor.

Quero-te num lugar onde
os nossos corações possam habitar
sem qualquer constrangimento
as veredas de um destino traçado
com a força do nosso querer comum.

Quero-te num lugar onde
seja fácil estar ao pé de ti:
precisar um afago e ter as tuas mãos
necessitar calor e ter o teu corpo
ansiar um beijo e ter a tua boca.

António Pires Vicente 
nasceu em Bragança a 5 de Setembro de 1963




segunda-feira, 4 de setembro de 2017




A PONTE DE VAN GOGH

Rio de Janeiro , 2004
Itatiaia
O lugar não importa: pode ser o Japão, a Holanda, a campina inglesa.
Mas é absolutamente preciso que seja domingo.

O azul do céu ecoa na esmeralda do rio
E o rio reflete docemente as margens de relva verde-laranja
Dir-se-ia que da mansão da esquerda voou o lençol virginal de miss
Para ser no céu sem mancha a única nuvem.
A calma é velha, de uma velhice sem pátina
As cores são simples, ingênuas
A estação é feliz: o guarda da ponte chegou a pintar
De listas vermelhas o teto de sua casinhola.
E, meu Deus, se não fossem esses diabinhos de pinheiros a fazer caretas
E a pressa com que o homem da charrete vai:
- A pressa de quem atravessou um vago perigo
Tudo estivesse perfeito, e não me viesse esse medo tolo de a pequena ponte levadiça
Desabe e se molhe o vestido preto de Cristina Georgina Rosseti
Que vai de umbrela especialmente para ouvir a prédica do novo pastor da vila.


 Vinicius de Moraes



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sexta-feira, 1 de setembro de 2017




Beijo-te

para saber que existem os corais
no fundo das águas.
E há uma mão
estendida para mim
nas tempestades
do reverso
das mortalhas.

Cavalguemos sem engano
desde a seda dos sexos.

Semeia
o meu destino feliz com a tua música.

Espalha na alvorada
a cor
da minha maternidade sagrada.

Edith Goel
(Argentina 1952)



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quinta-feira, 31 de agosto de 2017




Perfume Exótico

Quando eu a dormitar, num íntimo abandono,
Respiro o doce olor do teu colo abrasante,
Vejo desenrolar paisagem deslumbrante
Na auréola de luz d'um triste sol de outono;

Um éden terreal, uma indolente ilha
Com plantas tropicais e frutos saborosos;
Onde há homens gentis, fortes e vigorosos,
E mulher's cujo olhar honesto maravilha.

Conduz-me o teu perfume às paragens mais belas;
Vejo um porto ideal cheio de caravelas
Vindas de percorrer países estrangeiros;

E o perfume subtil do verde tamarindo,
Que circula no ar e que eu vou exaurindo,
Vem juntar-se em minh'alma à voz dos marinheiros.

Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães


Fonte: http://www.citador.pt/

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quarta-feira, 30 de agosto de 2017





Branco e Vermelho


A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.
Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.

Todo o meu ser, suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!
Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distancia reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)
Na areia imensa e plana
Ao longe a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.
Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.
A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Palidamente gemem,

A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.
Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor...
E ali fiquem serenos,
De costas e serenos.
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas.
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!
A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.
Ó morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'



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terça-feira, 29 de agosto de 2017




Faz-se Luz

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes    loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina    realmente    os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos    e na boca


Mário Cesariny, 
in "Pena Capital"


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