segunda-feira, 10 de julho de 2017





As Aldeias
Eu gosto das aldeias socegadas,
Com seu aspecto calmo e pastoril,
Erguidas nas collinas azuladas -
Mais frescas que as manhãs finas d'Abril.

Levanta a alma ás cousas visionarias
A doce paz das suas eminencias,
E apraz-nos, pelas ruas solitarias,
Ver crescer as inuteis florescencias.

Pelas tardes das eiras - como eu gosto
Sentir a sua vida activa e sã!
Vel-as na luz dolente do sol posto,
E nas suaves tintas da manhã!

As creanças do campo, ao amoroso
Calor do dia, folgam seminuas;
E exala-se um sabor mysterioso
D'a agreste solidão das suas ruas!

Alegram as paysagens as creanças,
Mais cheias de murmurios do que um ninho,
E elevam-nos ás cousas simples, mansas,
Ao fundo, as brancas velas d'um moinho.

Pelas noutes d'estio ouvem-se os rallos
Zunirem suas notas sibilantes,
E mistura-se o uivar dos cães distantes
Com o canto metallico dos gallos...

António Gomes Leal, 
in 'Claridades do Sul' 


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 9 de julho de 2017




A minha namorada é tão bonita, 
tem olhos como besourinhos do céu
Tem olhos como estrelinhas que estão 
sempre balbuciando aos passarinhos...
É tão bonita! tem um cabelo fino, 
um corpo de menino e um andar pequenino
E é a minha namorada... 
vai e vem como uma patativa, de repente morre de amor
Tem fala de S e dá a impressão que está entrando por uma nuvem adentro...
Meu Deus, eu queria brincar com ela, fazer comidinha, jogar nai-ou-nentes
Rir e num átimo dar um beijo nela e sair correndo
E ficar de longe espiando-lhe a zanga, meio vexado, meio sem saber o que faça...
A minha namorada é muito culta, sabe aritmética, geografia, história, contraponto
E se eu lhe perguntar qual a cor mais bonita ela não dirá que é a roxa porém brique.
Ela faz coleção de cactos, acorda cedo vai para o trabalho
E nunca se esquece que é a menininha do poeta.
Se eu lhe perguntar: Meu anjo, quer ir à Europa? ela diz: Quero se mamãe for!
Se eu lhe perguntar: Meu anjo, quer casar comigo? ela diz... – não, ela não acredita.
É doce! gosta muito de mim e sabe dizer sem lágrimas: 
Vou sentir tantas saudades quando você for...
É uma nossa senhorazinha, é uma cigana, é uma coisa
Que me faz chorar na rua, dançar no quarto, 
ter vontade de me matar e de ser presidente da república.
É boba, ela! tudo faz, tudo sabe, é linda, ó anjo de Domremy!
Dêem-lhe uma espada, constrói um reino; 
dêem-lhe uma agulha, faz um crochê
Dêem-lhe um teclado, faz uma aurora, 
dêem-lhe razão, faz uma briga...!
E do pobre ser que Deus lhe deu, 
eu, filho pródigo, poeta cheio de erros
Ela fez um eterno perdido...



Vinicius de Moraes


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 8 de julho de 2017




Saudade dentro do peito
É qual fogo de monturo
Por fora tudo perfeito,
Por dentro fazendo furo.

Há dor que mata a pessoa
Sem dó e sem piedade,
Porém não há dor que doa
Como a dor de uma saudade.

Saudade é um aperreio
Pra quem na vida gozou,
É um grande saco cheio
Daquilo que já passou.

Saudade é canto magoado
No coração de quem sente
É como a voz do passado
Ecoando no presente


Patativa do Assaré



Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 7 de julho de 2017




Haverei de te amar a vida inteira

Haverei de te amar a vida inteira.
Mesmo unilateral o bem querer,
é forma diferente de se ter,
sem nada se exigir da companheira.

Haverei de te amar a vida inteira,
(não precisa aceitar, basta saber),
pois amor que faz bem e dá prazer
a gente vive de qualquer maneira.

Eu viverei de sonhos e utopias,
realizando as minhas fantasias,
tornando cada qual mais verdadeira.

Eu te farei presente em meus instantes.
Supondo que seremos sempre amantes,
haverei de te amar a vida inteira.

Ronaldo Cunha Lima


https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 6 de julho de 2017




Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill, 
in 'No Reino da Dinamarca'


Fotos: pesquisa Google

quarta-feira, 5 de julho de 2017




O Amor, Meu Amor
Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.


Mia Couto, 
in "idades cidades divindades"


Fonte: http://www.citador.pt/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 4 de julho de 2017





I
Desta amarga existência em certo, amargo dia,
À hora da meia noite, augural e profana,
Eu, de velha doutrina, as páginas relia,
Curvo ao peso do sono e da fadiga insana.
Mal do meu pensamento a direção seguia
Por essa hora de horror em que da treva emana
Toda em funda hediondez, desoladora e fria,
Da atra recordação, a atra saudade humana.
Foi assim que senti, do meu triste aposento,
Como um leve sussurro a passar, lento e lento,
E uma leve pancada a bater nos umbrais.
Disse comigo: é alguém que pela noite fora,
Vem, retarda visita, e retarda-se agora...
A bater mansamente à porta, nada mais!...


Emílio de Meneses


Fot: https://www.pinterest.pt/cinafraga/