segunda-feira, 15 de maio de 2017





Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.
Nuno Júdice
In Poesia Reunida (D. Quixote)

Poema de amor: Carta (esboço


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 13 de maio de 2017





Para beijá-la avancei
e o desejo não se vergou ao medo.
ela disse: vais desonrar-te cedo!
respondi: é pecado sei!
mas algo supera essa mágoa:
é morrer de sede dentro d'água.

a mágoa doentia é que me deita
estas linhas que agora vos escrevo.
enquanto isso o lume da nostalgia
faz derramar minhas lágrimas.
ó meus amigos!
se ao impulso da minh'alma obedecesse,
rasgaria o meu peito à minha amada.


Abu-l-Fadl  Ibn Al-Allam
(Luso-Árabe Séc. XII)
in Adalberto Alves

"O meu coração é Árabe"


Fonte:http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.pt/
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sexta-feira, 12 de maio de 2017




Sim,
a importância de segurar teus cabelos,
de sentir o silencio de teus seios,
de ver teus olhos, intactos, trazendo a mensagem do começo da vida.

E é um decorrer de palavras simples,
de cenas comuns e amplas, na varanda que é como
um pedaço do fundo do mar.

Apalpo tua pele,
sinto todos os momentos de criação dentro de teu corpo
oh! os poemas que eu lanço, em germem, no solo de teu silêncio
e que voltam para mim - brotando - crescendo - lançando
frutos vermelhos na tarde quieta.

António Olinto

(Brasil  1919-2009)


Fonte:http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.pt/
Painting by Serge Marshennikov

quinta-feira, 11 de maio de 2017




Conheço esse sentimento
que é como a cerejeira
quando está carregada de frutos:
excessivo peso para os ramos da alma.
Conheço esse sentimento
que é o da orla da praia
lambida pela espuma da maré:
quando o mar se retira
as conchas são pequenas saudades
que doem no coração da areia.
Conheço esse sentimento
que é o dos cabelos do salgueiro
revoltos pelas mãos ágeis da tempestade:
na hora quieta do amanhecer
pendem-lhe tristemente os braços
vazios do amado corpo do vento.
Conheço esse sentimento
que passa nos teus olhos e nos meus
quando de mãos dadas
ouvimos o Requiem de Mozart
ou visitamos a nave de Alcobaça.
Pedro e Inês
a praia e a maré
o salgueiro e o vento
a verdade e o sonho
o amor e a morte
o pó das cerejeiras
tu.
e eu.»


Rosa Lobato Faria, 
em 'Dispersos'


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quarta-feira, 10 de maio de 2017




Amanheceu a minha vida no teu rosto
De uma doçura intensa e tão suave
Como se um divino fundo nele brilhasse
Eu era o que nascia soberanamente leve
E encontrava na limpideza centro do equilíbrio
Só em ti cheguei amanhecendo na minha madurez
Entrei no templo em que a luz latente era a secreta sombra
Foste sonhada por meus olhos e minha mãos
Por minha pele e por meu sangue
Se o dia tem este fulgor inteiro é porque existes
E é porque existes que se levanta o mundo
Em quotidianos prodígios
Em que ao fundo brilha o horizonte certo.



António Ramos Rosa, 
in O TEU ROSTO (Ed. Pedra Formosa, 1944)


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 9 de maio de 2017




Bela flor, longos cabelos,

moça com olhos de sombra,
flor de neve sempre branda,
dentes frios, rubra boca.

Cansado de tanto andar,
Chega o teu amado agora.
Que o coração se te alegre!
Quem te deu dor vai-se embora.

A água clara que corre,
tal como se vê agora,
assim é que há-de bailar
roda a gente à tua volta


América do Sul, Quíchuas
Séc. XVI-XVII
Trad. Herberto Helder
In Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro

Editor: Assirio & Alvim



Fonte: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.pt/

segunda-feira, 8 de maio de 2017




Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.

Adalgisa Nery


(Brasil 1905 – 1980)


Foto: By Michael Garmash